segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Bandido morre cedo

               Eu quase iniciava a crônica dizendo uma frase de efeito, quase rodriguiana: - nunca se odiou tanto quanto em nosso tempo. Em seguida, logo depois, julguei estar plagiando o grande cronista, e desisti. Julguei, por outro lado, estar generalizando além da medida. Afinal, uma frase desse tipo pressupõe a necessidade de uma limitação geográfica. Onde, nesses tempos, está-se a odiar tanto? 
               Por exemplo, os primeiros cinqüenta anos do século passado. Duas grandes guerras e uma revolução assassina nada mais foram do que a tradução do ódio que grassou no mundo, rompendo fronteiras e invadindo os mais tépidos e amorosos corações. Nunca a humanidade odiou tanto. Se me refiro à humanidade, me refiro ao mundo inteiro, e aí estava o espaço geográfico do ódio do século último.
               Com efeito, minha frase inicial pretendia se referir ao nosso diminuto universo estadual e municipal. Nunca se odiou tanto no Ceará e na cidade de Fortaleza quanto nesses tempos. No resto do país também muito se odeia, como jamais visto, mas o que ocorre aqui é infinitamente mais intrigante.  
               Falei tudo isso somente como introdução ao comentário que quero fazer a propósito do artigo de certo advogado publicado hoje no jornal O Povo. Ele afirma que nossa violência está "democratizada". Disse que a violência, antes restrita e sufocada na periferia, hoje está geograficamente disseminada entre nós. Todos em todos os estratos sociais ressentem-se do problema. Até aí nada demais porque nada disso é novidade. O problema surge quando o articulista ensaia adentrar para as explicações sócio-econômico-idealistas.
               Outro dia falei: - nossos assaltantes portam armas que custam dinheiro, usam carros e motocicletas na maioria das vezes não roubados, isto é, de sua propriedade, e muitas vezes são sujeitos bem apessoados e bem vestidos. Conclusão: - estamos diante de criminosos comuns, e não de esfomeados miseráveis. Esses últimos não roubam. No máximo furtam. Além disso, imputar ao pobre a autoria de nossos assaltos rotineiros demonstra um preconceito inaceitável. A maioria das pessoas pobres segue trabalhadora e honrada e não merece que se a ponha suspeita do mal que ora nos aflige. É bom que se lembre que muitos desses crimes são perpetrados contra pessoas humildes e pobres. 
               E o que dizer dos quase oitenta ataques a agências bancárias e caixas eletrônicos no Estado? Por suas características se percebe que seus autores são bandidos organizados e articulados. Não se está diante de moleques amadores. Usam armas pesadas e artefatos de uso restrito às forças estatais. São bandos numerosos que agem premeditadamente. É preciso dispor, previamente à ação criminosa dessa natureza, de recursos consideráveis. Conclusão: - os chefes desses caras são sujeitos poderosos e influentes. 
               Assim, me parecem tremendamente simplistas as explicações que se escoram em nosso conhecido, inegável e persistente abismo social. Não somente simplistas, mas até convenientes a propósitos nefastos e bem possíveis. Implanta-se a cada dia uma cultura do medo e do terror com lastro em fatos cotidianos, gerando a sensação de desamparo do cidadão por parte do Estado que não cumpre o seu papel. 
               E por falar em Estado não cumpridor de seu papel, fiquei aqui a pensar na minha enorme necessidade de revisitar Hobbes, Locke e Rousseau. As teorias do Estado jamais foram tão necessitadas de entendimento por parte nós, pobres ignaros, que passamos o tempo inteiro a sofrer nas mãos deste ente tão distante e tão etéreo. Vejam, por exemplo o que o Juiz Manuel Clístenes, titular da 5a. Vara da Infância e da Juventude, pensa sobre o Estado, segundo matéria do jornal O Povo de 10/10/2013:
               "A ausência do Estado e a ineficiência da escola pública são os principais responsáveis pelo envolvimento de jovens com o tráfico e outros atos infracionais. Clístenes defendeu a necessidade de cuidar das famílias e dar mais atenção às políticas públicas voltadas para a boa educação das crianças. 'Não adianta muitos policiais e cadeias. É preciso investir na educação, no lazer, no esporte, na cultura para a juventude'".
               Tudo bem, tudo certo. Sua Excelência, como titular na defesa dos inimputáveis, não poderia se expressar de outra forma. Espera-se que o noivo diga "sim", senão o casamento vai pro beleléu. O problema, um enorme problema, um problema que expõe o caráter da sociedade, é a questão da vítima. Dirá Sua Excelência e os que pensam como ele que a vítima não é o esfaqueado, o baleado, o assaltado. Dirão todos eles em coro: -"A vítima é o menor, é o incapaz"! Mas, então, seria legitíssimo que a sociedade indagasse a esses senhores: -"Então o esfaqueado, o baleado, o assaltado, o estuprado não são vítimas? E, se não são vítimas, são o quê"? 
               Sua Excelência deu uma aula de piedade e de entendimento do problema do menor incapaz. Disse: -"“A gente tem de cuidar dessas crianças. Se elas serão cidadãos de bem ou bandidos, depende de nós”. E mais: -"Não adianta muitos policiais e cadeias. É preciso investir na educação, no lazer, no esporte, na cultura para a juventude". A aula do senhor Juiz ensinou claramente: - se não educar, não adianta prender. Ora, mas é exatamente o que está a ocorrer, meritíssimo! 
               Vejam que nas palavras do magistrado está dito tudo. Ele, como servidor de um poder estatal, o Judiciário, diz que não prende quem não foi educado, mas, como representante do Estado na esfera da Justiça, sabe, melhor do que ninguém, que esse mesmo Estado não educa porque é omisso. Eis aí o buraco negro onde jazem todos as outras vítimas. Se é obrigação do Estado prover educação pública de qualidade e se ele não a provê, o não educado é vítima de quem? Sabemos que o cidadão comum e o Estado não são a mesma coisa, não se confundem. A chamada democracia representativa é um conto do vigário, uma mentira, um embuste. O cidadão comum e honesto, pagador incondicional e recalcitrante de elevados impostos, faz a sua parte, enquanto o Estado não faz a sua. 
               É aí que começa a farsa do Judiciário e dos poderes independentes. O Judiciário sabe  – foi o próprio Juiz quem o disse – que o Estado – entenda-se o poder executivo – é ausente e ineficiente. E que a vítima dessa ausência e dessa ineficiência é aquele a quem ele julga proteger, o menor que está à margem. Pergunta-se, então: - por que o Judiciário não pune ou obriga o Executivo a fazer o que não tem feito e que é de sua alçada? Os menores são vítimas do Estado na pessoa do Executivo. Por sua vez, as vítimas dos menores – que também são vítimas, sim senhor! – são vítimas do Estado. As vítimas dos menores criminosos são vítimas do Estado em pelo menos duas esferas de Poder! 
               O que esses senhores precisam entender é que ao cidadão vítima de um jovem criminoso deve-se, no mínimo, uma resposta que convença, por parte do Estado. Febens que só funcionam como fábrica de marginais e critérios aleatórios e puramente políticos para caracterizar um "incapaz" penal não satisfazem. O sangue das vítimas dos menores está nas mãos do Estado. De uma forma ou de outra.
               Além de tudo isso, senhor juiz, sabemos qual o destino da maioria desses menores. Viram bandidos. Só não os vemos mais vezes por uma simples razão: - bandido morre cedo. É o que os fatos têm demonstrado claramente. 

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