sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Dia das crianças macabro

               "O idílio do homem com a morte é tão nítido, tão evidente. Dirá qualquer um de vocês: -'Eu não quero morrer'. E, no entanto, o medo da morte é o mais falso dos medos. O que se esconde ou, por outra, o que não se esconde por trás de pequenas imprudências acumuladas"? 
               Em que data esse texto foi escrito? Ah, aqui está, ao seu final: 17 de fevereiro de 1970. Que fazia eu por essa época? Antes devo dizer que tinha 8, quase 9 anos de idade. Ainda não completara os 9. Por uma simples associação de idéias, posso quase dizer o que eu estaria fazendo. 
                Morávamos no Centro de Fortaleza, à rua Tristão Gonçalves, numa casa antiga que pertencia a uma tia-avó. O número era 815. Sim, Tristão Gonçalves, 815. O telefone era 1.13.84. Até o dia 31 de dezembro de 1969 vivíamos naquele casarão de seus 18 de frente por, sei lá, quase 60 de fundos. Lembro-me do pé de sirigüela no quintal. Aquele 31 de dezembro de 1969 foi o último dia em que lá dormimos, porque no dia seguinte estaríamos mudando de vez para a nova casa que meu pai construíra no que naquele tempo se chamava "bairro da Aldeota". 
               Assim, em 17 de fevereiro de 1970 eu, muito provavelmente, estava em férias escolares, correndo pelos terrenos baldios da Aldeota, matando lagartixas e comendo castanholas. É possível também, como alternativa, que estivesse jogando futebol nos terrenos desmatados. Para nós, crianças livres e destemidas, a morte não existia. Já o Nelson, lá no Rio de Janeiro, escrevia essas coisas. Nós, obviamente, de nada disso entendíamos ou sabíamos.
               E éramos destemidos não porque fôssemos afoitos ou prematuramente pedantes. Nosso destemor advinha de nossa felicidade, de nossos terrenos baldios, de nossas arraias, de nossos muros baixíssimos ou inexistentes, da abundância de nossos brinquedos e bolas de futebol, dos times de botão, de nossas goiabeiras (no Centro eram os oitis)... Enfim, não tínhamos medo, não sabíamos o que era ter medo.
               Passados mais de quarenta anos, não pude deixar de lembrar essas deliciosas memórias ao encerrar a leitura do texto do Nelson. Contudo, o trecho extraído foi o gancho que me prendeu aos dias de hoje e, consequentemente, aos diferentes momentos no tempo. Deixem-me ver se me faço entender pois admito que estou sendo vago. 
               O caso é que tem sido cada vez mais notório, no trânsito desta cidade, o desprendimento dos cidadãos para avançar o farol vermelho. Isso tem ocorrido em todos os momentos do dia e em todos os momentos da noite. Os que aqui vivem, sabem: - aguardar o farol verde à noite pode significar a entrada do pacato e honesto cidadão para as estatísticas da violência grassante. Assim, pelo sim, pelo não, não há um motorista ou motociclista completamente  honesto por aqui. Não que se não queira. É uma questão de impossibilidade. 
               O que chama a atenção, no entanto, são os motociclistas os que mais frequentemente avançam o sinal vermelho. E já não falo da tentativa de sobreviver aos assaltos, mas durante o dia, em plena luz do sol, o trânsito tinindo de movimento, e o sujeito sobre um veículo motorizado de duas rodas a passar e trespassar o sinal vermelho. O caso, então, toma os ares do que o Nelson chamou de "idílio com a morte" por conta dessas "pequenas imprudências acumuladas". Sim, porque não há outra explicação. 
               Hoje um de nossos periódicos anunciou que a cada três dias morre um motociclista em Fortaleza (http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1326807). Observem, então, que a hipótese do idílio não pode ser descartada. E o pior: - se o sujeito não zela pela própria vida, que dirá pela vida do outro. Está-se quase a provar que, por aqui, a vida perdeu completamente seu status de bem supremo e sublime. Esses suicidas não são somente suicidas: - são também homicidas porquanto igualmente assumem o risco de matar alguém. 
               Falei em crianças e lembrei: - amanhã é o dia delas. Amanhã lembrarei mais uma vez os meus dias de criança. Não direi "parece que foi ontem" porque de fato o foi. Foi tão ontem que quase posso tocá-los. Guardo aquele tempo como fazem os que foram felizes ao tempo lembrado. Sei que existem muitos que querem esquecê-los porque nada há de bom em seus dias de criança. Isso me faz valorizar ainda mais a minha infância e a me encher de gratidão a meus pais por terem me proporcionado o melhor em amor, proteção, zelo e educação sobre princípios imutáveis. Eles me deram uma família de bem, a fonte de onde brotam e vicejam os alicerces de um ser humano. 
               Por tudo isso, paradoxalmente, é que amanhã, para nós desta terra alencarina, é um dia de tristeza. Tristeza por nossas crianças que estão a crescer numa terra sem esperanças, onde o futuro se desenha tenebroso e negro; onde a vida é nada; onde seu abandono pretérito está se manifestando hoje através de jovens sem rumo e sem perspectivas, vítimas de nossos pensamentos mais fúteis e inúteis, e de nossos piores homens. Tiraram-lhes tudo, das doces ilusões próprias de seu tempo à paz que tanto precisam para uma adultícia produtiva, saudável e espiritual. Sua infância suprimida os transformou precocemente em "adultos" violentos e atormentados, o coração repleto de ódio e de desvalor, a vida sem o colorido da esperança por dias melhores. 
               Façamos amanhã não um minuto, mas um dia inteiro de silêncio em pesar por todas as crianças dessa terra. Não pensam os abastados que seus filhos não são ou não serão vítimas, que sobre eles não paira a mesma nuvem negra que encobre os filhos da miséria. Não se pode ser feliz habitando o mesmo espaço que habita o infeliz. Portanto, o lamento é para todas as crianças, indistintamente.
               Ontem fui levado, por dever de ofício, a amputar a perna de um garoto de apenas quinze anos. Vejam bem: - quinze anos. Tem nome de evangelista. Tão jovem, envolveu-se com quem pratica o mal, com outros menores que odeiam e que matam. Eis, pois, que tentaram matá-lo. Debalde foram os avisos, as admoestações, as súplicas e as lágrimas de sua jovem mãe, resignada em sua impotência de pobre de bens diante da força da mais maligna ambição desenfreada. Em sua dor de ter que aceitar forçosamente a nova situação – o filho mutilado –, disse-me: -"Quem sabe, doutor, o mal não tenha vindo para bem? Prefiro sepultar-lhe a perna a enterrá-lo inteiro..." E uma espessa lágrima – mais uma – desceu-lhe pela face abatida e consternada. Amanhã, pelo menos essa mãe há de chorar. Copiosamente.

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