quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Cumim

               Queríamos comer um peixe frito. 
               Veio o garçon. Com efeito, parecia mais um cumim. Teria o quê?, dezesseis, dezessete anos. Trazia numa enorme bandeja três pargos crus para que escolhêssemos. 
               Terminada a refeição, veio com a máquina para passar o cartão. Abri a carteira sem o cuidado de não expor seu conteúdo. Curioso e atrevido, ele falou: -"Vixe, doutor!... o senhor tem essa 'ruma' de cartão"?
                Percebendo o tom ingênuo do comentário, repliquei: -"É, não, rapaz... Aqui tem até carteira de estudante"!..., e puxei de lá minha carteira de estudante. Duvidando, certamente por conta de minha grisalha, fuzilou: -"E o senhor 'inda' é estudante"? 
               Segurando a carteira, só faltou pô-la de ponta-cabeça tão minuciosa a análise que dela fez. Dando uma olhada final no verso do documento, foi passando-a de volta às minhas mãos e dizendo: -"Tô terminando o terceiro ano e já 'num' 'güento' mais!... Doido pr'acabar"!... 
               "Gosta de estudar, não, macho"?, perguntei olhando fixamente para ele. Meneou a cabeça visivelmente contrariado e definitivamente convicto de sua pouca afeição aos livros. 
               Respondeu: -"Não, senhor"!... Fez-se um silêncio de poucos segundos, enquanto me decidia se valeria a pena falar alguma coisa a mais. Ao final disse, olhando para Bella: -"Vamos, então"? Ela sorriu o seu sorriso radioso e assentiu positivamente. Levantamos-nos, agradeci e saímos.
               Foi ali nas Flecheiras. Uma belíssima paisagem se espraiava diante de nós. O mar verde-azul formava piscinas naturais onde ficávamos imersos jogando conversa fora, a contemplar o azul anil do céu límpido, sem uma nuvenzinha sequer. Havia um olor doce-salgado, um cheiro de praia misturado a vento e luz e, ao longe, os coqueirais balouçavam sua ramagem e inclinavam-se como a prestar deferência à obra do Altíssimo. Por detrás das dunas e enfileiradas apontavam as torres e hélices do progresso, as geradoras de energia do vento. 
               O cumim já tomara a decisão. Preferia a vida de índio à de engenheiro. Ele estaria errado? Era o que me perguntava. Por um triz não agi como o histórico homem branco quando invadiu a terra inexplorada. Se de onde venho a cultura – ia dizer "ética" – impõe o "sucesso" e as posses, que direito tinha eu de imputar a essa ética a verdade absoluta? O cumim havia de ter outros talentos. Ele é apenas um ser humano, como eu, como qualquer um de nós.
              Feliz saí por saber que quando lá voltar teremos a pureza do cumim – que então já  garçon será – a nos servir com o mesmo prazer, alegria e solicitude. "O homem que não vive para servir não serve para viver".

                    Para Bella
                   Radioso é o teu sorriso, pela alegria de estarmos juntos, pelo brilho que dele emana...
                                                   

2 comentários:

  1. Fernando, muito bom!


    Asclépio

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  2. Fernando Cavalcante, a essa hora aqui da mesa de meu escritorio senti
    o cheiro desse peixe frito a beira mar. Abraco. Fabio Motta.

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