quinta-feira, 3 de julho de 2014

LÚBRICO ARDIL

          Há de chegar o dia em que nada de novo se verá sob o sol. Ou não?
          Cresce em elegância a ciência que ensina que tudo o que ocorre, todo o fato, todo evento é um acontecimento ao acaso. Não há causalidades, nem determinismos. Esse aparente caos explica, por exemplo, porque um time de futebol ganha não por ser melhor que o adversário, mas por ser o resultado de cada partida um evento fortuito.
          Paul Davies em seu “Os três últimos minutos”, conjecturando sobre como serão os momento finais do universo em que vivemos, especula que todas as alternativas de uma possibilidade ocorrer serão fatos mais cedo ou mais tarde, porquanto o enorme tempo em escala universal assim permite. Para nós, que vivemos setenta, oitenta anos, não é assim – não há tempo a que tudo aconteça conosco. Nunca viveremos a experiência de todas as possibilidades. Não temos tempo. Assim, em termos universais, nada de novo se verá, exceto, talvez, as singularidades do início e do fim de tudo, e o excêntrico e temido buraco negro, outra singularidade. Dito de outro modo, podemos ser vítimas ou premiados do acaso, a depender do julgamento que se faça.
          Vejam vocês o Amorim. Tenho notícias dos diversos fatos dos quais foi personagem central. Entendam: - ser personagem principal de uma cena, ou de um engodo, ou de um acontecimento, não faz de ninguém exceção do acaso. É justamente o oposto – o acaso nos põe no lugar certo e na hora certa. Devo dizer que é também obra do acaso quando estamos na hora e no lugar errados. Então, conto o acaso que sucedeu e depois julguem a posição do Amorim, segundo lhes pareça.
          Um amigo lhe bate o telefone e o convida a vir a sua casa tomar um uísque, jogar conversa fora, ouvir boa música. Era noite de sábado, e o cearense da capital não gosta muito de sair no sábado. Prefere a sexta. Aos sábados muitos restaurantes já estão fechando à meia noite. Para uma cidade de quase três milhões de almas, tal constatação deve sinalizar algo. Entretanto, para um convite desses não há escapatória.
          Amorim foi-se abancando na sala de estar entre almofadas e lucivelos. O amigo serviu-lhe uma generosa dose de um legítimo escocês, sua bebida preferida. Punha-lhe uma mísera pedra de gelo, hábito que adquirira para evitar os assédios da mulher a lhe repreender as tendências alcoólatras. Dizia: -“É pra enganar a torcida!” Por ele não punha nada. Dali a pouco chega a dona da casa, em trajes que Amorim julgou um tanto afoitos. Não deu muita importância, apesar de a idéia lhe empertigar o juízo por alguns poucos minutos. Podia vestir-se como quisesse. Afinal, era a patroa.
          Amorim pensava ter ouvido o amigo dizer algo sobre ter convocado mais pessoas para o sarau, mas já estava ali há quase hora e meia e mais ninguém aparecera. Como apreciava uísque em demasia, a garrafa já lhe ia pela cintura. Na mesma proporção, não ligava se viria ou não mais alguém, ou se o amigo resolvesse pô-lo para fora na intenção de namorar a mulher, para quem já olhava com olhos de cachorro esfomeado.
          Súbito, vira-se o amigo para ele e pede licença – ia sair para comprar uma pizza. Nada tinha a oferecer. Esquecera este importante detalhe. Amorim não era dado aos prazeres culinários, de modo que o amigo se justificou com a própria fome. Amorim parecia um faquir bem nutrido de quase nada que comia, ao passo que o amigo, ao contrário, faria um excelentíssimo rei momo. A mulher transitava ali e acolá no pequeno apartamento, e veio sentar-se ao lado de Amorim tão logo o marido fechou a porta da feira atrás de si. Era notório que o uísque já lhe bolinava o juízo, pois que se aproximava ainda mais.
          Tudo foi muito rápido.
          A mulher e Amorim, seminus na sala, naquele tipo de sexo que permeia as fantasias mais eróticas da raça masculina, aos suaves acordes bossa nova, sob a luz trêmula de uma vela de chama bruxuleante - eis o quadro. Molhavam-se de beijos carnívoros e línguas serpentes, a se entrelaçar em bocas abertas devoradoras, ávidas de engolir o outro na sede daquele tesão insaciável. As mãos perdidas buscavam os botões, os fechos, os laços e cadarços, para depois sumirem entre pernas e gemidos. Ali mesmo no sofá. Ali mesmo na sala. Ali mesmo na casa do amigo, com a mulher do amigo.
          De repente, sem querer, ainda que a luz fosse pouca e o álcool embaçasse a visão, Amorim enxerga o marido, o amigo, parado por detrás da cortina ao lado da porta, a observar. De um salto, como atingido por descarga elétrica, Amorim se esquiva daquele corpanzil já a sentir os efeitos brochantes do medo e da vergonha, tentando ao mesmo tempo esconder com as mãos o sexo a meio mastro. Respirava sôfrego, em espasmos, e transpirava como se o sol estivesse a pino sobre ele.
          Ia balbuciar algo, mas o amigo, saindo do esconderijo improvisado e sem nenhuma pizza nas mãos, foi logo tranqüilizando: - “Calma, meu irmão... Pode continuar a lambança. Aqui não tem monotonia, não. Nós apreciamos”...
          Os dois são amigos até hoje e, vez ou outra, Amorim sai a visitá-los em noite de sábado – tomar um uísque, jogar conversa fora, ouvir uma boa música...
          De fato, nada há de novo sob o sol. E o acaso pode vir a ser só mais uma estranha combinação de felizes, ou funestas, coincidências.

Fernando Cavalcanti, 06.10.2009

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