sábado, 7 de março de 2015

PUTIN E A NOVELA

          Foi invadido de terror que li ontem nas páginas de certo jornal local a seguinte manchete: PARA PUTIN, ASSASSINATO TEVE MOTIVAÇÃO POLÍTICA. A matéria relata que o líder russo teria dito que o assassinato de Boris Nemtsov, ferrenho opositor de seu governo alvejado com quatro balaços pelas costas, “foi politicamente motivado e representa uma vergonha para o país”. 
          Não sei se já relatei aos amigos que estou a assistir novelas. Peço, contudo, calma antes que saiam a fazer algum juízo de valor sobre esta aparente apreciação a uma forma de arte considerada menor. Sim, peço calma. E o faço por duas razões. A primeira é relacionada com a presunção de a novela televisiva ser uma forma de arte de quinta categoria. A segunda tem a ver com a primeira, mas perpassa por aquele que vê, ou assiste a, ou aprecia esta forma de arte. 
          Comecemos dizendo que houve novelas e há novelas. As de hoje pecam todos os pecados, o conteúdo ser essencialmente vazio o principal deles. O conteúdo oco é oco em temas de peso e preenchido com o que há de pior – autores de péssima qualidade querem impor formas “heterodoxas” de comportamento sexual ao mesmo tempo em que pretendem destruir ou desvirtuar os valores familiares. Assim, não há trama. Atualmente, a novela televisiva, antes uma forma de arte que nos fazia avaliar e refletir sobre as questões essenciais da vida e do ser humano, é uma das mais deslavadas formas de alienação e superficialismo a pulular neste pobre e lamentável país. Assim, os amigos leitores hão de entender meu apreço e minha admiração por esta obra-prima da arte brasileira, gerada e vinda a público em momento histórico e político notável. 
          O único a perceber bem cedo quais as reais intenções do prefeito de Sucupira, Odorico Paraguassú, foi o médico do posto da cidade, o dr. Juarez Leão. Odorico articulara, segundo ele, uma trama que cedo ou tarde resultaria no confronto homicida entre as duas famílias rivais da cidade, os Cajazeira e os Medrado. Como eram inimigos figadais desde tempos imemoriais, os ameaçadores bilhetes anônimos enviados a ambas as famílias em breve fariam o efeito desejado. Alguém acabaria morrendo, justamente o que o prefeito supostamente queria. Tais bilhetes faziam parte do plano de Odorico. Afinal, passados 7 anos da última morte na guerra entre as duas famílias, uma relativa paz reinava. Os Cajazeira haviam migrado para Jaguatirica, cidade vizinha, e o prefeito Odorico Paraguassú via em seu retorno à velha Sucupira a oportunidade de, finalmente, inaugurar sua grande obra, o cemitério em cujo portão mandara escrever, no arco que o cobria e em letras garrafais, o dizer: “Revertere ad locum tuum”.
          Era sua promessa de campanha a inauguração do primeiro e único cemitério de Sucupira o que, em sua avaliação, implicava na realização do primeiro sepultamento naquele campo santo. Como há mais de 2 anos ninguém morria na cidade, Odorico já havia feito de tudo para providenciar o primeiro defunto. A oposição, atenta aos “feitos” do prefeito, trabalhava para evitar aquilo que seria uma vitória para o executivo municipal. Até defunto havia sido roubado durante o velório, certa vez, para evitar que Odorico inaugurasse o cemitério. Como resultado, o prefeito partiu para a ignorância: – resolveu, com a ajuda de seu secretário particular, o senhor Dirceu Borboleta, um borboletista militante e juramentado, apor uma escuta clandestina no confessionário da igreja a fim de descobrir quem teria sido o autor do roubo do defunto, um vereador da situação morto durante um tiroteio ocorrido na cidade e cuidadosamente tramado por Odorico. 
          Antes disso, vários falsos alarmes soaram, mas ninguém morreu. Seu Libório, o dono da farmácia, tentara o suicídio 3 vezes, sem sucesso. O prefeito dizia, após os sucessivos fracassos do potencial suicida e depois de ter tentado facilitar-lhe o ato deixando, propositalmente, sobre a bancada da farmácia durante uma visita um frasco de veneno para matar ratos: –“Nesse aí num posso confiar”... Não funcionou e o prefeito passou a se referir a seu Libório como um suicidista fracassado. 
          De outra feita uma epidemia de tifo se desenhou no horizonte, e Odorico correu a interceptar o carregamento de antibióticos e vacinas que o doutor Juarez mandara trazer da capital. Novamente com a colaboração de seu secretário particular, que também trabalhava algumas horas na agência dos correios, Odorico fez sumir a valiosa e salvadora encomenda. Ciente do que estava a ocorrer, o médico viajou e foi, pessoalmente, buscar os remédios. Paraguassú não teve dúvidas – contratou Zeca Diabo, o famoso e temido filho da terra cangaceiro que voltara a viver na cidade, para assaltar o doutor e subtrair-lhe a carga. Zeca agiu com eficácia, mas pouco tempo depois devolveu ao médico produto do roubo posto que percebesse, arrependido, o mal que faria a muitas pessoas e isso não queria fazer, já que prometera a seu santo padim padre Cícero Romão Batista, seu santo devoto e protetor, nunca mais tirar a vida de ninguém. Verdade seja dita e esta bem o deve e é ela a seguinte. Zeca Diabo fora autorizado pelo senhor prefeito a voltar a Sucupira a fim de receber a benção de sua santa mãe que já era cega e beirava os 100, o que, na verdade verdadeira não era tão verdade assim, já que o coronel Odorico Paraguassú tencionava mesmo era que o facínora acabasse por matar algum de seus antigos desafetos ou quem quer que fosse a fim de realizar seu intento. O tempo passou e o bandido foi ficando, ficando, e acabou por matar ninguém. Antes, resolveu mudar de vida e fez promessa a seu santo padim padre Cícero Romão Batista de que nunca jamais tiraria  novamente a vida de alguém.  
          As esperanças do prefeito recaíram outras tantas vezes sobre Zelão das Asas, um pescador em débito com seu santo protetor, Bom Jesus dos Navegantes. Escapara ileso em acidente com seu saveiro e fez promessa ao santo – construiria para si um par de asas e saltaria com elas da torre da igreja matriz, com a fé inabalável de que nada lhe aconteceria. O diabo é que o senhor vigário, cônscio da loucura de tal empreendimento, impediu Zelão, várias vezes, de lograr seu objetivo, para grande contrariedade do prefeito Odorico que não via a hora de arranjar seu primeiro defunto.
          Na cidade de Sucupira permaneciam residentes somente as três irmãs Cajazeiras, que eram correligionárias de Odorico durante o dia e à noite reversavam-se em sua cama, sem que nenhuma das três soubesse das outras. Certa vez a caçula Judicéia teve a brilhante ideia de trazer da capital para a casa das três irmãs o primo Ernesto que havia sido desenganado pelos médicos da capital, onde morava. A esperança era a de que o homem batesse as botas em Sucupira e servisse como primeiro defunto para o cemitério. Arrependida, Judicéia recorreu a doutor Leão em busca de ajuda. Doutor Leão era competente e acabou salvando a vida do ex-moribundo, o que o tornou o adversário número 1 do prefeito.   
          Doutor Juarez diagnosticou sem dúvida: – o prefeito estaria acometido de um tipo grave e perigoso de psicopatia e deveria ser internado com urgência em hospital para doentes mentais. De fato, após o roubo do defunto o chefe do executivo passou a apresentar crises de alucinações e de delírios persecutórios. Como única medida prática possível, Leão procurou as lideranças das famílias em guerra e as alertou para a manipulação da qual estavam sendo vítimas, mas ninguém acreditava no que ele dizia. Odorico, diziam, jamais seria capaz de articular uma guerra entre eles. Afinal, sua rixa era antiga e muitos familiares de ambos os lados já haviam sucumbido nessa desavença. Os outros, membros do povo comum, também nada viam de errado com o excelentíssimo chefe do executivo e achavam que louco estava o próprio doutor Juarez Leão, ao levantar acusações tão sérias e graves contra um homem tão bom.
          Odorico, que antes de mais nada seria considerado, à luz do entendimento e senso comum sobre a avaliação de um político um político “habilidoso”, conseguia, através de seu carisma e de sua retórica inúmeras vezes vazia e incompreensível ao populacho, enganar e esconder de todos, e inclusive de seus familiares, seu verdadeiro caráter. Tinha de si mesmo a mais nítida e fiel avaliação – era homem reto, preocupado com o bem-estar do povo e benfeitor em sua comunidade. Seus capatazes e jagunços, que executavam suas ordens para perpetração de seus crimes os mais hediondos possíveis, nada pensavam, nenhuma opinião emitiam posto que fossem somente os agentes criminosos a serviço dos crimes de um outro criminoso não comum. Sim, o prefeito Odorico Paraguassú não era um criminoso comum. Era um criminoso pior que o comum, posto que gozasse da confiança cega das pessoas que o haviam elegido.
          Mas, voltemos ao Putin.
          O Putin vem a público fazer declarações que afastam de si mesmo quaisquer suspeitas. A matéria diz o seguinte: “as autoridades russas ainda buscam suspeitos de envolvimento no crime cuja motivação ainda é desconhecida”. Como Odorico Paraguassú, que queria sumir com os medicamentos para combater a possível epidemia de tifo a fim de que surgissem muitos defuntos para inaugurar o cemitério da cidade, Putin tinha o maior interesse na morte de seu desafeto. “Nós precisamos livrar a Rússia da vergonha e da tragédia desse tipo de crime que recentemente vimos e tivemos experiência: falo do audacioso assassinato de Boris Nemtsov bem aqui no centro da cidade”, disse Putin, utilizando-se da conhecida retórica manhosa e ardilosa dos autoritários que matam populações e etnias inteiras e depois veem a público fazer declarações que só contribuem para aumentar as suspeitas sobre quem fala. Não bastassem os assassinatos até hoje não esclarecidos de outros dois opositores, Anna Politkoviskaia e Alexander Litvinenko, ocorridos em seu governo as frequentes acusações de o estado russo muito se assemelhar politicamente à ex-União Soviética e de ter-se torndo um estado “mafioso” na sua gestão, além do fato de o homem ter sido agente da famigerada KGB, Putin segue lépido e fagueiro com o suposto milagre econômico de sua administração. 
          Foi tudo isso o que me causou horror. Como diz um velho e conhecido chavão, a vida às vezes imita a arte. No final da novela, Odorico é assassinado por Zeca Diabo e ele próprio acaba por inaugurar o cemitério de Sucupira...

O assunto mais importante do mundo pode ser simplificado até ao ponto em que todos possam apreciá-lo e compreendê-lo. Isso é – ou deveria ser – a mais elevada forma de arte”. (Charles Chaplin)

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