sexta-feira, 29 de agosto de 2025

UM SUMIÇO EXPLICATIVO

 

         Era psicóloga.

              O marido, neurocirurgião brotado em família de médicos, demorava-se no leito. Haviam acabado de acordar de uma noite de sono profundo e reparador.

– “Não vais trabalhar”?, ela quis saber, no vai-e-vem entre o quarto e o banheiro

Tirando os lençóis do rosto, ele disse, com as palavras saindo de um longo bocejo:

– “Sinto-me meio cansado... não sei...”

Mal completara a frase, pulou da cama e disse:

– “Vamos à luta!”

– “Então vou preparar um café pra gente...”, retrucou ela com um sorrisinho meio amarelo.

Dali a pouco ele chega à mesa e se depara com um desjejum de hotel cinco estrelas. Era capricho de mulher apaixonada.

– “O seu carro está atrás do meu”?, perguntou ele mordendo o bico do pão.

Era um prédio com duas vagas na garagem para cada apartamento, desses em que as vagas são alinhadas, como numa fila.

- “Está, sim. Você pode ir no meu. Quando eu sair, uso o seu”.

Estava resolvido. Ele podia sair antes dela. Não tinha problema. Se estivesse apressado, claro. Neurocirurgião anda sempre apressado, é o que se pensa a princípio. Ou talvez não. Ele não parecia ter pressa. Não ia operar ninguém. Combinaram de cada um sair no tempo que cada um demorasse para se aprontar, tomar banho, escovar os dentes, se vestir...

Ao final de uma hora ele estava de maleta na mão, bem vestido, cheirando a um Lacoste comprado no freeshop de Standsted dois ou três anos atrás.

-“ Tô indo”..., e lhe beijou a testa, ela ainda sentada à mesa tomando café preto.

Era cedo. Ele só voltaria ao fim do dia.

 

                                                              ***

 

Ele teve sua rotina de praxe no trabalho. Ao longo do dia não havia recebido mensagem alguma da mulher. Poder-se-ia dizer que era algo meio estranho, fora do padrão. Ou nem tanto, já que, como psicóloga, tinha o consultório para dar conta. Ainda assim, lhe pareceu esquisito, já que habitualmente ela lhe enviava pelo menos uma mensagem ao longo do dia querendo saber como ele estava.

Voltava para casa por volta de 20 horas, após um consultório laborioso e cansativo. Ansiava revê-la, jantarem juntos, contarem reciprocamente sobre seu dia.

Ao adentrar o estacionamento do prédio concluiu que ela já havia voltado para casa, já que seu carro estava lá. A curiosidade lhe instigava. Por que razão incapacitante passara o dia numa ausência fantasmagórica e aparentemente interminável?

Ao abrir a porta já foi chamando seu nome. O apartamento não era grande, de modo que ela ouviria seu chamado de qualquer aposento onde estivesse.

Nenhuma resposta. O silêncio era absoluto. Foi direto para a suíte; ela poderia estar no toalete de porta fechada.

O quarto estava bem arrumado como se a funcionária tivesse passado por lá para fazer uma limpeza geral de rotina. Mas, não era dia da limpeza. Seguramente nenhuma funcionária lá estivera. Tirou o telefone portátil do bolso na busca de uma mensagem dela. Nada. Tampouco uma chamada não ouvida e não atendida. O aparelho estava no silencioso. Ela poderia ter ligado.

Melhor seria ligar para ela e saber se estava tudo bem. Cidades não muito seguras sempre levantam suspeitas quando de ausências prolongadas e inexplicáveis.

O telefone chamou até cair na caixa postal.

Ligou para o consultório. Ela poderia estar lá atendendo algum paciente e não estaria podendo falar ao telefone, mas a atendente foi taxativa – ela ligara bem cedo pela manhã cancelando toda a agenda do dia. Não aparecera por lá.

O próximo passo foi ligar para a sogra, que morava noutra cidade. Pelo menos com a mãe ela teria falado. E, de fato, falara. Há poucos minutos. Dissera estar tudo bem, tudo em ordem, tudo nos conformes. Ele se furtou a lhe dizer que presumia haver algo errado, já que ela sumira... para ele, somente para ele. A mãe saberia de algo? Das razões de ela estar agindo assim? Ele não fazia a menor ideia, já que não brigavam, não discutiam, tratavam-se bem e com respeito, enfim, sua relação seria perfeita.   

 Resolveu descansar e esperar. Mais cedo ou mais tarde tudo viria à tona. Pelo menos sabia nada de mais ter-lhe acontecido. Tomou uma ducha e deitou-se para um sono reparador.

 

                                                             ***

 

Uma semana se passou e nada de notícias dela. Não que ele não tivesse tentado por várias e várias vezes. O telefone chamava até desligar e ela não atendia. No consultório a atendente informou que ela cancelara todas as consultas por tempo indeterminado, mas que já voltaria a atender na semana seguinte, dali a três dias. Ele pensou em lá ir para conversar com ela, mas considerou que não seria um lugar muito apropriado para isso. Aguardaria. Lembrava-se de que ele estava com o carro dela. O dele estava parado no estacionamento do prédio desde que ela sumira. Em algum momento ela viria resolver.

 

                                                           ***

 

Num domingo o telefone tocou. Era ela.

– “Vou passar aí amanhã para pegar as minhas coisas...”

– “Mas, Odila, o que está havendo”?

– “Passarei quando você já tiver saído para trabalhar, tá bem”?

Ele ficou mudo, sem saber o que dizer. Alguns segundos se passaram e ela completou:

– “Não quero mais... não vou mais voltar... já deu... aproveito e pego meu carro.”

E desligou.

Doutor Alarico até hoje não sabe o que se passou com sua esposa Odila.

domingo, 20 de abril de 2025

MESQUITA, O COBAIA

            Muitos dos queridos amigos estão a ver navios após ler minha última crônica comentando sobre os médicos que faturam em associação a empresas. Vou explicar. Ocorre que a intitulei "As cobaias do Mesquita", e, no desenvolvimento do assunto, nada falei sobre as cobaias do Mesquita. Dirão que o título nada tem a ver com o tema. Eis que agora me proponho a esclarecer o aparente engodo.

Antes, contudo, devo lembrá-los que Nelson Rodrigues escreveu uma peça que, quando de sua primeira produção e apresentação, intitulou-a "Otto Lara Resende ou Bonitinha Mas Ordinária". Estava escrito assim mesmo, desta forma, na placa do teatro. E, se não me trai a memória, não havia realmente nada entre o Otto, seu grande amigo, e o tema da peça. O caso é que ele vivia a mexer com o amigo. Vivia a brincar com ele em suas crônicas. Não é o que acontece aqui.

 Tudo começou há vários anos quando o meu querido amigo Mesquita sofreu um acidente de carro. Numa de suas fragorosas farras, o carro caiu numa ribanceira e ele sofreu um traumatismo na coluna cervical. Poderia ter morrido, mas Deus guardava-lhe vida longa e de sucesso. Com o tempo, as articulações de algumas de suas vértebras do pescoço entraram num processo degenerativo de desgaste, uma artrose, que necessitou de tratamento cirúrgico. Lá foi o Mesquita para a mesa ser operado por eminente cirurgião das bandas paulistas, que passava algum tempo por aqui fazendo não sei quê. Aqui abro um parêntese para lembrar que, nessa época, ele não era dado a se consultar com entidades do além, de forma que optou por tratamento por cirurgião vivinho da silva. Ora, o cirurgião foi escolhido por indicação de outro cirurgião da praça local que, em sua franqueza e honestidade, confessou ao Mesquita sua pouca experiência naquele tipo de operação. Assim, feitos os arranjos necessários, o cirurgião paulista e o cirurgião cearense foram juntos operar o Mesquita. O cirurgião cearense funcionou como auxiliar do pica-grossa paulista.

Não sei se por obra do destino, ou por estar vencido o sedativo que deram ao nosso Mesquita, ou se o anestesiologista estava a dormitar, o fato é que ele ouviu quando o paulista sussurrou ao cearense: -"Faz você que eu te ajudo." Ora, o cirurgião cearense é profissional respeitadíssimo, pessoa de reputação irretocável, competência técnica inegável, um excelente e honrado médico de branco, como diria o meu amigo Casoba. Dali em diante Mesquita esteve sob os efeitos de anestesia geral. Ao acordar horas mais tarde, no entanto, passou a ruminar sobre o que ouvira. Ruminava igual a boi no pasto a mastigar aquele mato verde e inquebrável, a engolir várias e várias vezes, com o mato lhe voltando obstinadamente à boca repleta daquela saliva espessa e pegajosa. Não lhe saía da mente o paulista a dizer ao cearense "faz você que eu te ajudo"; e ruminava também o que lhe dissera o franco e honesto cirurgião cearense: "não tenho experiência nesse tipo de operação". Entretanto, tudo correu bem e nosso querido Mesquita saiu de alta em perfeito estado. O talho que lhe fizeram no pescoço cicatrizou que quase não se percebe. As dores no pescoço cederam completamente. Enfim, curou-se o Mesquita do incômodo problema, exceto por um mínimo detalhe: uma seqüela para deglutir.

Ora, o Mesquita come mais do que os bois ruminantes. Olhem os bois no pasto. Não param de mastigar e comer. Passam ali o dia inteiro a comer e a fazer cocô. Quem não conhece o Mesquita creia: a comparação é perfeita! Exceto pelo cocô, que o meu amigo não come e evacua ao mesmo tempo como os bois, ele come o mesmo ou mais que eles. Isso fez realçar ainda mais sua seqüela deglutiva: sempre que engole, o homem vira a cabeça para o lado, sempre o mesmo lado, como a dirigir o bolo alimentar na direção correta. Não importa onde esteja, se na cozinha de casa, se no Picanha do Cowboy, se no restaurante do Waldorf Astoria, é sempre a mesma coisa: o Mesquita engole sua comida com a cabeça a pender para o lado. E é aí que entram as frases dos exímios médicos que o operaram e que ele nunca deixou de ruminar: "faz você que eu te ajudo" e "não tenho experiência nesse tipo de operação". Chegou, então, à conclusão fatal e inevitável: funcionou como cobaia do cirurgião cearense. Sim, fizeram-no de cobaia, de objeto de teste e de treinamento de um profissional médico. Passou, então, a alardear em todos os lugares – em festas, em reuniões, no estádio de futebol, no avião em suas viagens à América, na sauna, na academia, nas reuniões de seu condomínio, nos batizados, no confessionário ao padre, nas sessões espíritas ao médium, para os surfistas ao seu lado sobre as ondas - enfim, para todos, que adquiriu esse "pequeno defeito" por ter sido cobaia de um médico. A coisa ganhou tal e qual dimensão que o apelidaram de "cobaia".

Então, escrevi o último texto falando da questão dos míseros honorários pagos aos médicos por parte dos planos de saúde e o intitulei "As cobaias do Mesquita", querendo sugerir que, em verdade, os médicos é que estão sendo cobaias de seus pacientes, nas mãos dos planos de saúde. Está aí explicado todo o caso. Não esqueçam que o Mesquita adora adoecer de pequenos males. Para ele, um resfriado ganha proporções tsunâmicas dadas as implicações que pode ter. A conclusão a que chego é que o homem adora dizer-se seqüelado. É coisa mínima e quase imperceptível. Só serve mesmo às nossas gozações. A ele serve a se manter minimamente doente eternamente. E isso ele adora!

 

Por Fernando Cavalcanti, 21.11.2008   

AS COBAIAS DO MESQUITA

               Ora, estive a matutar, a remoer, e ruminar igual boi no pasto com aquela mastigação toda, e aquela baba pegajosa e elástica a escorrer pelos cantos do focinho. Mais parecido com isso não poderia ser. Quase igual, sem tirar nem pôr. E por quê? Simples: a conversa em nosso último almoço no qual esteve presente o estimado amigo Luís Miranda, marista de última hora, mas de alma marista enquanto estava no Militar. Não há a menor sombra de dúvida. Ele, Alexandre Matos e eu entramos a falar da desgraça da prática médica devida aos míseros honorários pagos por planos de saúde. E o Luís se perguntava e me perguntava como estávamos conseguindo sobreviver. Fiz lá as minhas considerações, mas, ao final, senti não haver dissecado completamente o assunto. Óbvio é que não tinha intenção de fazê-lo agora.

 No entanto, estive conversando com dois amigos e colegas de profissão e eles me deram algumas dicas para explicar maneiras pelas quais o médico pode ganhar dinheiro, mesmo percebendo os baixos honorários. A mais poderosa delas é através de sua "associação" com laboratórios de exames complementares, clínicas radiológicas, fornecedores de materiais e equipamentos de alta tecnologia, e "associação" com a indústria farmacêutica. Como funciona? Igual ao mensalão. Ganham parte do lucro através da solicitação de exames complementares, da prescrição de medicamentos e da indicação do uso, nos pacientes, de materiais protéticos de elevado custo. Isso pode ser feito através de dinheiro vivo, viagens com todas as despesas pagas, ou as duas coisas. Aqui o assunto merece uma maior apreciação, sob pena de se sermos injustos com os médicos.

A biotecnologia muito avançou e a bem dos pacientes. Hoje se dispõem de próteses que substituem artérias, membros, válvulas cardíacas, ossos; máquinas que mantêm a circulação e a oxigenação do sangue em operações com o coração aberto; pinos, parafusos, porcas e fixadores ósseos para artrodeses e fixação de fraturas; colas biológicas que unem retalhos de incisões cirúrgicas e ossos da calota craniana; isso para dar apenas alguns exemplos. Longe de serem prejudiciais aos pacientes, esses equipamentos trazem enormes benefícios quando bem utilizados visto que podem até evitar operações de grande porte que de outra forma seriam necessárias para corrigir problemas ameaçadores da vida. Grandes procedimentos cirúrgicos foram substituídos por procedimentos menores trazendo grandes benefícios aos pacientes.

O problema começa quando determinado dispositivo é utilizado não para beneficiar o paciente, mas o vendedor e o médico que indica e realiza o procedimento. Nessa circunstância ocorre o oposto: submete-se o paciente a riscos desnecessários, e lesa o plano pelos elevados custos desses materiais. O dinheiro do lucro dessa "venda" vai para o bolso do vendedor do equipamento e do doutor.

Da mesma forma, laboratórios de exames complementares e clínicas radiológicas remuneram os médicos que solicitarem bastantes exames. Como estão a ganhar uma miséria pela consulta, a consulta é substituída pelos exames que, mais uma vez, podem implicar em riscos desnecessários para o paciente. Não se estabelece uma relação entre o médico e seu paciente e, para obter as informações que precisa para chegar ao diagnóstico, o médico lança mão dos exames "complementares" laboratoriais e radiológicos. Em troca, essas pessoas jurídicas repassam parte de seus lucros a esses médicos "solicitadores" de exames.

Todas essas afirmações que fiz merecem uma ressalva de importância tremenda: a grande maioria dos médicos não compactua nem se "associa" a estes "esquemas". Ao contrário, pagam pelo erro de seus pares desonestos num feedback cruel e desonroso para sua boa índole. Boa parte deles atende rápida e mal o seu paciente na intenção de "fazer volume" em número de consultas, e assim tentar transpor o desonroso honorário. Eis aí, meus caros amigos, o que está a acontecer.   

É minha sincera opinião, após vinte e três anos de formado, que exercer medicina não pode mais ser encarado como um meio de vida. O médico já não é mais um profissional liberal na acepção mais completa da palavra. Entre ele e seu paciente estão o governo irresponsável e os planos de saúde. Ele nada mais arbitra sobre seus salários e honorários. Pode aumentar sua renda apenas à custa de mais trabalho, sendo necessário para isso subtrair mais tempo de sua vida. Portanto, é minha sincera convicção que os novos acadêmicos e estudantes de medicina sejam cada vez mais orientados a ter outro negócio além de sua profissão, a fim de que dele possa ganhar dignamente e não seja assim tentado a essas práticas que mancham a nobre atividade de cuidar dos males alheios. Não condiz com profissional que deve ter ampla cultura geral, equilíbrio pessoal e emocional, competência técnica, habilidades sinestésicas, visuais e auditivas e conhecimento científico contínuo e atualizado.          

Para encerrar, envio fotos do que fazemos na labuta diária no centro cirúrgico de um grande hospital desta decadente cidade, na tentativa de aliviar o infortúnio do sofrimento e da dor. O primeiro caso é o de um jovem de 25 anos vítima de choque elétrico de alta voltagem quando tentava salvar seu companheiro, que morreu instantaneamente. Ele teve a mão, o antebraço e braço direitos literalmente eletrocoagulados necessitando sua desarticulação do tronco. O segundo é o de uma senhora de 61 anos, diabética e hipertensa, com uma lesão aterosclerótica obstrutiva típica do diabético, das três artérias da perna, levando à gangrena do antepé e necessitando a revascularização do membro (inferior direito) com uma ponte de veia safena invertida que agora levará sangue oxigenado para seu pé e perna, desviando-o das obstruções. As imagens obtidas numa angiografia pré-operatória servem como guia do cirurgião, que agora sabe para qual das artérias vai desviar o fluxo. As fotos mostram a ponte confeccionada partindo logo abaixo do joelho e indo até o tornozelo. As últimas imagens mostram um coto de amputação sangrante e com boas perspectivas de salvamento do membro.

Quanto acham que os planos de saúde pagariam por cada uma dessas operações? Se bem me informo, juntando as duas não dá para ganhar mil e duzentos reais brutos. E os clínicos, que não operam? Não nos esqueçamos que o MÉDICO é o clínico. Este é o grande médico. Os senhores médicos, infelizmente, estão perdidos entre a intranquilidade e a extrema responsabilidade. Creio que a intranquilidade dos míseros honorários deve ser substituída pela recobrar da consciência e autoestima, o lembrar-se de quem somos, aonde chegamos como técnicos, a obrigação de sermos humanistas e o recobrar da humildade de se saber gigante. Façamos o trabalho, mas não podemos continuar morrendo por esta causa. A sociedade tem a obrigação de lutar por uma excelente medicina. Esta excelente medicina passa necessariamente por seres humanos que são médicos, nunca por um aparelho que fecha um frio diagnóstico como em "Guerra nas Estrelas".  

 

Por Fernando Cavalcanti, em 18.11.2008

AS MAZELAS DO MESQUITA... E DO FERNANDO CAVALCANTI!

 Fábio Motta, o nosso Mesquita sempre foi meio dado ao distúrbio hoje conhecido como TOC, transtorno obsessivo-compulsivo. Ele, de todos nós, é o que mais teme doenças, e o que mais adoece. Digo isso com excessivo pesar posto que me faça mal ter amigos a adoecer. Foi Robert Kiyosaki quem disse que "você recebe o que você teme". Fica, então, bem comprovada a tese do eminente guru das finanças: o nosso Mesquita recebe o que mais teme, no caso as doenças. O homem tem hipertrofia prostática benigna; artrose do joelho não sei qual - talvez de ambos; artrose da coluna cervical por trauma em acidente de carro - já operada, mas com seqüelas, já que funcionou como cobaia do cirurgião que operava; micose numa unha do pé não sei qual - talvez ambos; laringite crônica - que o fez faltar ao último racha -; e outras mazelas menores e recidivantes que servem-lhe a dar desculpas para faltar a eventos que não lhe interessam ir. Lembrar que o homem é adepto das idéias de Hippolyte Rivail, vulgo Allan Kardec. Por isso realizou há alguns anos uma "cirurgia espiritual" com um curandeiro formado na Universidade do Além. Diz ele que o joelho está na mesma, mas o fato serve a ilustrar a obsessão de nosso Mesquita em doenças.

Semana passada Mesquita cogitava internar-se por causa de sua laringite e me dizia ao telefone portátil numa voz fugidia, quase inaudível: -"Primeiro a saúde! Primeiro a saúde!" Que é que se pode fazer, meu chapa, diante de quadro tão lamentável e típico de transtorno obsessivo-compulsivo? Entretanto, ninguém, nem mesmo o Mesquita, tem culpa de adoecer, ou de ter o tal transtorno. Roberto Carlos, o cantor, tem o transtorno. Luciana Vendramini, a linda atriz e modelo, também.  Não têm culpa disso. Que se pode fazer? Tratar, eis a resposta. Mesquita devia ir ao psiquiatra e tratar seu transtorno. Mas ele não o faz. E o que faz? Vai ao dermatologista tratar a micose da unha. E o que o dermatologista faz? Passa remédio. Dos mais tóxicos para o fígado, por um período de quatro ou cinco meses, salvo engano. E dá recomendações expressas ao Mesquita: -"Não me vá beber, hein? Veja lá!" E Mesquita passa quatro ou cinco meses obsessivamente tomando um remédio que não chega à unha – lá não há vasos sangüíneos – em completa abstinência de sua cerveja. Resultado: micose na unha persistente. Não poderia ser de outra forma.

E o joelho do Mesquita? O espírito que encarnou no médium que o "operou" faltou a essa aula na faculdade. Quando vivo, é claro. Em todo caso, presume-se que quem morre e passa a gozar da infinitude da sabedoria deveria saber operar com competência um joelho podre. Mesmo que não tenha sido médico em vida, herdará toda a sabedoria do universo. E o que aconteceu com o joelho do Mesquita? Continuou podre. O outro joelho, operado por um reles mortal que estudou às pampas, curou. Não sei se nesse caso a obsessão de meu amigo era nos joelhos doentes ou se na busca de prova de vida além-túmulo. Confesso que não me chegou ao conhecimento o desfecho final da história desse joelho, mas amanhã saberei. Nada como um jogo de futebol para se testar joelhos.

A doença prostática do Mesquita é a mais normal do mundo. Explico: muitos homens em sua idade a têm. É normal. Ou melhor, se o sujeito a tiver estará dentro de uma estatística esperada. Não me lembra se Mesquita tem obsessões estatísticas, mas as tiver entrou em uma delas. Mas – vejam lá! – não espalhem por aí essa hipertrofia, que ela se descobre através de uma manobra nada agradável: o "toque" retal. Ninguém vai querer sair por aí alardeando sua hipertrofia prostática, sob pena de se saber "tocado". Aliás, usar o verbo "tocar" para manobra tão brutal é mais um eufemismo da prática médica. Que me perdoem os médicos, e principalmente o meu querido amigo e irmão Fernando Cavalcanti, mas "tocar" é outra coisa. Isso que eles fazem é uma brutalidade, um ultraje, uma invasão. Nunca um "toque"! E já começo a me preocupar se meu querido Mesquita tem obsessão no "toque".

Não nos esqueçamos que o Fernando Cavalcanti largou a Proctologia porque os doentes tinham para com ele uma relação de amor e ódio. Quase todos os seus doentes terminavam no divã do psiquiatra. Não me entendam mal: não era o toque do Cavalcanti que os levava ao psiquiatra. Era a dubiedade de sentimentos que nutriam por ele. Uma hora queriam beijá-lo; no momento seguinte queriam matá-lo. Cavalcanti começou a perceber que sua vida social começava a amofinar, a definhar, a encolher. Seu círculo de amizades já não era o mesmo. Alguns se afastavam. Fui testemunha ocular e auditiva.

O que ocorreu foi o seguinte. Estávamos Cavalcanti e eu numa dessas festas nababescas. E, coincidência, muitos médicos colegas dele presentes. Começamos a notar que muitos desses colegas eram comemorados quando encontravam seus pacientes: -"Olha, Fulano, aquele ali é o doutor Sicrano, que operou meus peitos caídos! Olha como ficou uma maravilha! Ele é ótimo!" Ou: -"Menina, aquele é o doutor Beltrano, que fez os partos do Zezé e da Mariazinha! Ele é perfeito!" Ou:- "Suzana, venha conhecer meu dermatologista. Tirou aquelas manchas que eu tinha na cara, lembra? Ele é um amor!" E assim por diante com cardiologistas, clínicos, cirurgiões, oftalmologistas, etc. etc. Exceto o Fernando Cavalcanti. Não veio ninguém comemorar o Cavalcanti. Ao contrário, alguns desviavam o caminho quando percebiam que iam passar perto dele. Concluímos, então, que o proctologista é um ser deplorável e detestado. Mexer nas partes íntimas das pessoas não é uma tarefa fácil. Urgia mudar de rumo. Conclusão: Fernando Cavalcanti foi fazer cirurgia vascular. Mandou os "toques" às favas. Os que ainda estão aí a fazer devem ser respeitados, em que pesem as considerações que fiz acima sobre o eufemismo. Afinal, alguém tem que fazer o serviço sujo. Graças a eles existem os que precisam amar e odiar ao mesmo tempo para viver.

 

Por C. Amorim, em 06.11.2008

A MORTE DE SOFIA

  Sofia Elisabeth faleceu na sexta-feira. Eu soube hoje, domingo. Meu compadre, amigo e irmão Chico Heli, que a conhecia, lia no jornal de ontem o convite-enterro. Os jornais locais não têm obituário, de modo que se pode topar com um anúncio desse tipo até na página de esportes. Se o sujeito não gostar de esportes e lá estiver o anúncio da morte de alguém conhecido, não o saberá a tempo. Ou não saberá jamais se não ler jornais, como eu. Ninguém que a conhecia e que soube de sua morte ao tempo da mesma se dignou a avisar. "Morrer é não ser visto". Há anos eu não a via. Há anos ninguém a via. Sofia já morrera para nós, eis a verdade. Morreu pouco depois do início de sua doença crônica e incurável, há cerca de 25 anos. A vida é bem cruel, é sabido. Para alguns ela é monstruosa. Terá sido assim para ela?

                Eu a conheci em 1979, em nosso último ano do Colégio Marista Cearense. Tínhamos 17 anos. Era uma linda menina morena, vivaz, simpática, inteligente. Tinha uma beleza exótica, os olhos fundos e penetrantes, cabelos lisos e longos, de um castanho reluzente e avermelhado. O nariz fino e bem desenhado separavam aqueles olhos brilhantes e alegres. Tinha os ângulos da mandíbula baixos, o que dava a seu rosto uma irradiação forte, e lhe imprimiam simetria perfeita. Seu corpo de mulher recém-esculpido era voluptuoso e esguio, e suas formas se realçavam por suas roupas bem à moda da época. Sua voz era algo rouca e grave sem contudo perder a feminilidade assustadora e cativante. Doce e linda era Sofia Elisabeth. Estudei com ela o último ano do ginásio antes de entrarmos juntos para a faculdade de medicina em 1980.

                Naquele 1979 saudoso e repleto de romantismo ela conheceu e começou o namoro com o querido amigo Valder Silva Santos. Eles se apaixonaram e viveram um intenso e pacífico caso de amor. Eles eram perfeitos juntos. Seu romance não tinha a torridez dos amores ciumentos e possessivos, mas isso não o tornava menos pulsátil e denso. Até que a morte trágica e súbita de Valder em 1981 os separou. Ela sofreu a dor da expulsão compulsória da vida do ser amado, do cúmplice, do amante, do amigo, do futuro pai de seus filhos. E, depois da tragédia, a outra.

                O diagnóstico foi chocante. Todos começamos a morrer quando nascemos. A esse processo de morrer naturalmente juntou-se outro à vida de Sofia. E desde então passei a não mais vê-la. Nesses cerca de 25 anos eu a devo ter visto umas duas ou três vezes. E quando a via, não mais a via. Parecia-me outra pessoa. Não por mudanças em seu aspecto físico somente. Ela era outra pessoa e constatar isso me era muito doloroso. "Quem é vivo sempre aparece". Sofia nunca aparecia. Nunca mais apareceu. E agora sei que definitivamente não mais aparecerá.

                Não tive uma ligação muito forte com ela. Nem tive uma ligação superficial. Mas tivemos uma ligação muito intensa ainda que fugaz, principalmente após Valder, meu amigo de noites de estudo e algumas farras. Sinto, agora que ela se foi sem deixar possibilidades, que ela foi extirpada de mim e de muitos outros que a amavam ou a admiravam em sua beleza de ser humano simples e amoroso. Tudo em Sofia era intenso. Seu potencial era ilimitado, mas jamais o desenvolveu plenamente dadas as limitações lhe impostas. Chegou a escrever um livro em parceria com alguém, mas ela teria feito muitíssimo mais sem dúvida. Por isso ainda agora me parte o coração a certeza de nunca mais a encontrar. Essa é a angústia de todos nós: o fim inexorável. Ainda mais quando lhe foi tolhida a vida em vida. Pobres de nós e de nossas vaidades tolas.

 

Por Fernando Cavalcanti, 10/08/2008

sexta-feira, 18 de abril de 2025

CONSELHOS DO AMORIM II: A CONFISSÃO

        Estou em casa em verdadeiro ócio improdutivo quando me bate o telefone portátil. Hoje em dia é difícil ser discreto e se manter inidentificável. Tudo que se diz, que se faz, que se escreve – e, por que não dizer? – que se pensa, é objeto da observação e percepção de alguém. Outro dia desses, não faz muito tempo, o sujeito foi flagrado em companhia da mulher alheia dentro de um ônibus a pelo menos três mil quilômetros de casa. Pode ser uma coisa dessas? Noutro caso, o sujeito estava em Paris, a cidade mais romântica do planeta, quando foi visto com a amante aos amassos mais feios do mundo. Então, não há esconderijo nenhum neste mundo onde se possa passar despercebido. Exceto um: o aparelho telefônico. Em que pese à existência de aparelhos identificadores de chamadas, há outro dispositivo que permite ao aparelho que chama ter seu número não conhecido e não identificado. Assim, ligo para quem quer que seja e me escondo usando este estratagema. Foi o que aconteceu comigo nesta chamada. Não pude nem poderei saber jamais saber quem foi o autor desta ligação.

                De fato, foi uma mulher. Uma voz muito suave, sensual, com inflexões expressivas. Pretendia nitidamente ser o mais feminina possível. Pretendia demonstrar auditivamente quão fêmea era. Fazia parte de seu intento. Disse logo de cara que era uma amiga do Amorim. Mais: não seria tão amiga; era mais uma admiradora. Ou por outra: admirava-me o estilo e a maneira corajosa como escrevo. Por extensão, admirava a grande amizade que une Amorim e eu. E seguiu com o que pretendia: mandar um recado ao amigo. Justificou o fato de não lhe ligar diretamente alegando que sabia da perspicácia de Amorim e temia ser identificada por ele. Em outras palavras: sou um indivíduo nada esperto. Por isso escolheu a mim a servir de leva-e-traz.

                -"Quero que lhe diga que assumo: gosto de apanhar. Nelson Rodrigues estava certíssimo." Ora, de susto não morri. Tive ímpetos de rir com uma de minhas gargalhadas sonoras e abjetas, mas confesso que senti a seriedade da moça em seu tom de voz, e a coisa perdeu toda a sua potencial hilaridade. E continuou: -"E gosto de ser mulher de malandro. Gosto que me mandem. Uma mulher só atinge a plenitude de ser mulher quando é capacho de seu homem." Mais uma vez, não foi então que morri de susto. Assustava-me, no entanto, tamanha franqueza e assunção: –"E, olha, sou letrada e estudada. Sou de boa família. Estudei na América. Não tenho o pé na favela, não, viu?" E despediu-se com recomendações expressas a que Amorim ficasse ciente imediatamente, sem demora. Com efeito, o discurso era de alguém que domina o português com esmero e perfeição. O conteúdo aparentemente chulo ganhou uma moldura de firmeza e beleza indiscutíveis. Confessar uma fraqueza de coração aberto faz ganhar a rendição de quem acusa.

                Eu, que já fui transformado em leva-e-traz a contragosto, corri a me desfazer do peso daquela confissão resoluta e implacável. Estava, como já disse, na paz do lar. Troquei meu figurino para o cenário da repartição onde o Amorim trabalha e fui lhe levar pessoalmente o recado. Ele me chamou para um café numa sala reservada e ali mesmo lhe passei o ocorrido. Despedi-me e, quando fiz menção de virar as costas para sair, ele me segurou pelo braço e ordenou: -"Quero que escrevas tudinho deste assunto e mande aos que te lêem. Principalmente às mulheres! Depois disso, dê o caso por encerrado. A não ser que surjam réplicas à altura. Veja lá! Confio no teu taco, meu chapa!"

                E aqui estou eu cumprido como fiel amigo a missão a mim creditada. E de antemão já peço aos que se sentirem incomodados que evitem me mandar recados ao Amorim: o assunto está encerrado e nova pauta urge. Também não me peçam o telefone do Amorim, que ele não usa esses aparelhos portáteis que abundam hoje em dia.  Correio eletrônico? Ele não os tem da mesma forma. Como tenho dito, Amorim prefere viver a vida de forma crua e direta. Ele considera que isso, sim, enriquece o viver.

"Quero sua risada mais gostosa

Esse seu jeito de achar que a vida pode ser maravilhosa.

Quero sua alegria escandalosa

Vitoriosa por não ter vergonha de aprender como se goza."  (Ivan Lins/Vitor Martins)

 

Por Fernando Cavalcanti, 26.10.2008    

O AMORIM E O PALHARES

       Nelson Rodrigues escreveu inúmeras vezes em suas crônicas, e contos, e romances, e peças teatrais que, dentre as mulheres, só as neuróticas não gostam de apanhar. Em outras palavras, as normais gostam de levar umas boas bordoadas, segundo ele. O mesmo Nelson era considerado um sujeito dado à pornografia, ao erotismo, favorável ao sexo liberal. E por quê? Ora, porque seus temas eram o que acontecia de fato na sociedade. Os fatos do dia-a-dia eram relatados em suas peças, e romances, e contos. Na apresentação de suas peças a platéia delirava de indignação e apupos. E queriam linchá-lo. Só pensava em sexo, se julgava. E ele, aos brados e com as veias túrgidas no pescoço, gritava às platéias: -"Burros! Burros!" porque não entendiam bulhufas. Ou melhor: entendiam, sim. Mas a face da vergonha se cobria com a máscara de sua falsa moralidade. 

                Nelson Rodrigues expunha as entranhas da sociedade, de suas famílias, de seus mais recônditos e perversos segredos. Sua arte era uma denúncia, uma indignação, essa sim. Aqueles que o vaiavam eram os hipócritas, os atores reais da vida real a protagonizar a arte que ele mostrava e criava. Em verdade, nada criava. Abria-lhes a podridão encoberta. Por isso muitos o detestavam. As pessoas eram e se comportavam exatamente da forma como ele mostrava. E sabem o que acontece com quem lê Nelson Rodrigues? Gargalhadas. Sim, ri-se a não mais poder. E quando rimos, percebemos que estamos rindo de nós mesmos. Percebemos como somos patéticos. Isso entre os normais, que gostam de apanhar. Entretanto, sempre haverá os hipócritas, os que se melindram, os arautos da "moralidade" e dos "bons" costumes a condenar sua própria exposição e desmascaramento. Repudiam sua obra porque ela lhes deixa nus. Rangem os dentes porque a arte está a lhes indiciar.

                Nelson Rodrigues era católico, conservador, abstêmio, sensível e genial. Algo mórbido, é verdade, porquanto acreditava na beleza do amor que se suicida por se saber inviável. Sabia transformar o mundo real em arte. Os hipócritas e neuróticos pensavam que ele queria transformar nosso "puro" mundo na pornografia que escrevia. Em suma: Nelson demonstra com sua infindável e imorredoura obra que nossa sociedade vive, sim, uma vida pornográfica.  Às vezes em preto e branco, às vezes colorida. Mas uma pornografia. Um grande filme de sacanagem em que muitas vezes o ator mata a atriz em nome do amor. Um filme em que a atriz não pára de gozar, mas se finge de comedida e prendada quando sai às compras. Um filme em que o ator é um canalha irreparável, como o Palhares, que não respeitava nem as cunhadas.

                Garanto-lhes: Amorim não lhe chega aos pés. Nem Fernando Cavalcanti aos de Nelson Rodrigues. Já os leitores...

 

Por Fernando Cavalcanti, 23.10.2008

UM SUMIÇO EXPLICATIVO

           Era psicóloga.               O marido, neurocirurgião brotado em família de médicos, demorava-se no leito. Haviam acabado de ac...