Moravam numa bela casa no Parque Manibura.
Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do
tempo em que o homem saía cedo para o trabalho. Ele não – ficava em casa o dia
inteiro. Às vezes saía, tinha reuniões de trabalho, coisas a resolver. Mas
gostava mesmo era do fundo da rede. A sesta depois do almoço era sagrada.
– “Meu trabalho é em casa, meu amor”, dizia. “É home office” ...
Ela não se conformava. Diferente
dele, saía diariamente para o emprego e voltava para casa no começo da noite.
Nem o fato de ele cuidar da casa como um serviçal amenizava a frustração de ver
seu homem em casa a maior parte do tempo. Cuidava do jardim, varria a calçada,
limpava a piscina... E ela: – “Onde já se viu? Não faz nada! Absurdo”! E a
coisa foi piorando entre ela e ele.
Não deu outra – a separação
resolveria tudo.
“Gostamos um do outro, mas não
dá mais”, disse ele a um amigo. E completou – “Mulher chata, bicho... um pé no
saco”! E ainda: – “Gente boa... mas um pé no saco”.
De fato, seria a segunda
tentativa de separação, já que em vez anterior até fechara um contrato de
aluguel de um apartamento onde moraria, mas acabou por rescindi-lo. O amor
falou mais alto para, em seguida, a vontade de dela se afastar tornar-se
insuperável. Nem pelo mais robusto amor ficaria um dia a mais naquela casa na
companhia da mulher.
***
Alugou um apartamentinho pequeno
no Meireles, bairro nobre, a duas quadras da praia, da Avenida Beira-Mar. Podia
não ter nada no cubículo, mas tinha a varanda virada para a praia. Não consta
ter vista mar, já que outros prédios na frente bem podiam atrapalhar a vista.
Porém, a tal varanda dava para a vastidão dos céus, dos ventos, das nuvens, do
sol e da lua. Já bastava. E tinha os armadores de rede. Em suma – alugara um
espaço no Céu, utilizando uma figura de linguagem bem aquém do real.
Não podia faltar o som. Sim,
punha ali na saleta que dava para a varanda as caixas de som da radiola.
Apreciava os velhos e bons toca-discos de vinil. Frequentava sebos e neles
adquiria antigos e bons LP’s do tempo da adolescência. E gostava tanto de
raridades que comprara recentemente de um amigo o “THE DARK SIDE OF THE MOON”,
em sua posse desde os anos ’70. A bem da verdade, adquirira dois exemplares do
referido LP, uma delas colocada em moldura refinadíssima como a de um NARCISO
pendurada na parede para sua eterna admiração.
Da rede ficava a apreciar o valoroso quadro enquanto se deliciava
ouvindo Clare Torry em “THE GREAT GIG IN THE SKY”...
–“Me arrepio todo, bicho”!, dizia ao descrever sua cena.
***
Tempos depois uma loira cinquentona e exuberante engraçou-se dele. Conheceram-se
na Beira-Mar, sei lá. Não demorou muito a se engalfinharem em prazeres quase
diários. Descobriu nela orgasmos múltiplos e infindáveis.
-“Gozou trinta e três vezes, bicho! Uma loucura”! Dir-se-ia estar em
transe, possuída por entidades. E, depois do episódio, saiu a falar como o Cebolinha
do Maurício: tlinta-e-tlês, tlinta-e-tlês, tlinta-e-tlês... Mais – fazia
pilhéria do pedido do esculápio ao enfermo: – “Diga trinta e três”!
Estava todo faceiro até perceber nela certas inconveniências.
- “É louca, bicho. Quer saber detalhes do passado de minha vida amorosa”
...
Perguntava de tudo e de todas. E quando bebia era o diabo – demonstrava
um ciúme desproporcional ao envolvimento recente. A coisa foi tão impactante
que ele resolveu dar-lhe um gelo. Dava desculpas para não a encontrar.
A pressão alta e o diabetes mereciam cuidados. Afinal, já tinha até passado
por procedimento para desentupir as coronárias. Queria mais aquilo, não. Todo cuidado
é pouco, dizia. Não convinha estresses desnecessários com outro convívio
improdutivo. E descia três – ou seriam tlês? – a quatro vezes na semana a
uma farmácia vizinha ao condomínio para verificar se suas mazelas estavam sob
controle.
De tanto lá ir tornou-se conhecido dos funcionários, notadamente das farmacêuticas
que lá faziam o trabalho de atender os que queriam medir a pressão e verificar
a glicose no sangue
***
– “Senhor Amorim, o senhor está muito bem”, disse a farmacêutica certo
dia e a certa altura do atendimento.
– “Suas mãos são macias e o senhor tem uma áurea intensamente positiva.
É um homem muito interessante” ..., continuou.
– “Lembro de o senhor ter dito que não costuma beber, não é isso”?
Ele, que já tinha notado e observado as formas da doutora, não hesitou.
Respondeu: – “Não bebo, mas posso perfeitamente acompanhar amigos num drinque”.
Era noite. Ele continuou: – “A que horas você está livre? Tenho lá em cima, em
casa, um delicioso reserva francês tinto... Posso acompanhá-la, se quiser. Que tal”?
Ela respondeu balançando positivamente a cabeça e mordendo safadamente
o lábio inferior.
O que Amorim não quis me confessar até hoje foi
se o pessoal do Parque Manibura ainda tem ido vê-lo com a mesma regularidade
após a separação e vice-versa. Afinal, a farmácia é colada no prédio do homem.