quinta-feira, 20 de março de 2025

CÓLICA PEITORAL

             ERA "malhador". Diariamente estava na academia a levantar pesos e anilhas. Mas, naquele dia...

             Doeu-lhe no peito aquela dor que se espraiava para os ombros, as costas, o pescoço e a garganta. Os braços e as pernas pareciam faltar-lhe à medida que uma angústia se lhe apoderava como a antecipar-lhe o fim da vida.

– “Não estou bem”, disse à esposa. “Leva-me daqui a um hospital”.

Ela o pôs no carro. Saíram.

No primeiro hospital disseram não atender o seu caso. Nem lhes disseram de que caso suspeitavam. Seguiram para outro.

Lá também não atendiam. Pelo menos daquela vez orientaram para onde o deveria levar. Foi correndo. No trajeto entre um e outro a dor amainava e voltava, amainava e voltava, como uma “cólica” no peito.

No terceiro hospital o acolheram e já iniciaram os primeiros procedimentos para alívio de tudo aquilo e tentativa de elucidar seu caso.

– Ele parece estar infartando, disse o médico.

Depois de tudo, horas mais tarde, confirmou-se o que o médico dissera. Por ter sido tratado em tempo hábil, tudo correu bem dali em diante.

Horas depois, já no leito da unidade de tratamento intensivo, bem acordado e sem dor, confessou a alguém, um funcionário da limpeza que se aproximara do leito em sua rotina diária: – Foi logo depois de uma “trepada”...

             
            Não se sabe até agora é se houve ou não a concorrência do “azulzinho” no episódio... 

sábado, 15 de março de 2025

POBRES DE NÓS...

 Já nada sei sobre amizade. Já nada sei sobre o amor. Já não entendo o relacionar-se. Mas aprendi o quanto somos responsáveis pelo que recebemos. E por ter bem entendido o assunto é que me retraio. Encolho-me em casulo. Já não quero sair. Já me sinto obrigado a tornar cartesianas minhas companhias, meus “amigos”, meus “amores”. E já me eriço os pêlos qual um gato quando à vista de um cachorro. E me escondo na música e neste texto. Quero mais e mais estar pleno deste e neste texto. Quero mais e mais submergir na música, nos acordes, nas levadas, nas escalas, nos improvisos. E almejo o dia em que estarei tecnicamente independente, para me perder nos improvisos de um solo sem fim. Almejo o dia em que não me importarei com a platéia porque cônscio de minhas idas e vindas nas notas. E não se me endurecerão os dedos. Flutuarei em ares só meus, e que farei ouvir aos que me assistem.  Minh’alma se enlevará na expressão de minha mais profunda dor, ou gozo, ou pranto, que minha música falar. Como me libertar das convivências diminuidoras que me rondam? Como me libertar dos conceitos superficiais de meus convivas, se os “amigos” partiram para sempre? Como expor novamente a minha alma a espíritos insensíveis e blasfemos? Ou a outras almas que penam na escuridão de seus pequenos mundos? Como, nesta curta vida que já se esvai de mim, livrar-me-ei do opróbrio dessas consciências toscas e abjetas? E não serei eu mesmo o mal maior? Por acreditar? Por amar? Ou por não amar? O que farei?

Não sei o que farei. Mentir é sempre uma alternativa. A pior de todas. Dizer-se insensível ante a falta dos “amigos” seria a maior de todas elas. Dizer-se carente do amor de uma mulher seria outra, porquanto esses amores são vazios de amizade. Ou, se fossem possíveis tais amores, quantas mulheres me bastariam? E para quantas mulheres mentiria antes de lograr o meu objetivo de macho? Julgaria que elas não pensam, não sentem, não sofrem. Onde se passa a verdade? Em que plano? E a vida passando sobre as águas dos nossos rios de angústia... contendas e mais contendas! Por querer ajudar e acertar somos manipulados. E uma manipulação vil te leva a “mares nunca d’antes navegados”! O jogo de forças te bate à porta sem que saibas o que significa, ou o que está por trás, por vir. Descobrirás, finalmente, que eras necessitado no jogo da vida de alguém, amiúde alguém que julgas que te “ama”. Pobre de ti! Farás tudo para não perder o teu “amor”, o teu “amigo”, o teu “pai”, a tua “mãe”! e já tudo estará perdido... pobre de ti!

Já nada sei sobre essas coisas dos seres humanos. Estudei para saber das doenças. E jamais saberei sobre as doenças, porque quanto mais sei menos sei. Não mais se deve morrer. Não mais se pode morrer. Já se não aceita a morte natural. Não se morre, dizem os causídicos. Em toda morte há que se responsabilizar alguém. Não se morre. Vive-se eternamente. Nem mesmo há que se envelhecer. Não é permitido. Quem envelhece tem culpa. Deve ser punido. Deve ser execrado. Os que cuidam das doenças e do envelhecimento que paguem judicialmente por permitirem o envelhecer, e o decair da beleza, e o “anormal” que envelhece.

Os insensatos, os idealistas, que se julgam defensores dos fracos e dos pobres, são canalhas abjetos que os que têm noção aprovam por não sei quê razão. Julgam, os que têm noção, que os fracos são mesmo fracos e que não podem se defender. Tolos! Os fracos, que pensam nada saber, sabem tudo. Mas são chamados de “fracos” por supostamente não saberem buscar seu alimento. Ora, até os bebês sabem onde buscar seu alimento: na teta materna. Como não saberiam os “fracos” onde buscar seu alimento? Eles sabem, sim. Continuam a buscá-lo na teta... do governo, que os quer ali a buscá-lo para trocar com eles o seu continuísmo de “fracos”! e seu continuísmo nos palácios... pobres “fracos”! Nem os animais são tão fracos. Os que “têm noção” são os idealistas abjetos dos “fracos”! Doutores, entendidos, “sábios”! Promovem os fracos! Desafiam a natureza que se aperfeiçoa com a “survival of the fitest”! Querem que a natureza prolifere os “fracos”! Não pensam em educar os fracos a que se tornem fortes e estejam aptos a competir pela “survival of the fitest”! Os sábios se esquecem dos “Barbosas” que aproveitaram as oportunidades. Os “Barbosas” são fortes que floresceram do meio dos “fracos”! Tolos esses que se dizem “sábios” e defensores dos “direitos” dos “fracos”! Tolos e néscios! Olhem os “Barbosas”, imbecis! Leram tudo o que lhes foi dado a ler! Aprendam com os “Barbosas”, idiotas! Mirem-se nos “Barbosas”, ingênuos! Esses “Barbosas” mostram insistentemente que o mérito individual é o que conta! Que “quem espera nunca alcança”! Mostrem-lhes os “Barbosas”, tolos inconseqüentes!

A mesmice e a teimosia por protesto é insana. Por isso devaneio. Por isso mergulho neste texto. Pobre de mim! E de vocês que me lêem...

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                Por Fernando Cavalcanti, 19/07/2008

DUAS RAZÕES

  Brasileiro tem mesmo é que se foder. Há uma penca de razões. Darei duas.

                Sou fã de Stephen King. Costumava ler seus livros e assistir aos filmes baseados em suas histórias. O gênero terror pode ser fino ou pode ser grotesco. O grotesco é aquele que não tem pé nem cabeça, e onde o inverossímil predomina. O exemplo mais típico é "Sexta-Feira 13". Pode haver coisa mais estúpida do que a matança indiscriminada de inocentes por um ser indestrutível e imortal? e que ressuscita dos mortos a cada película? Não há nada mais imbecil em termos cinematográficos. E  creio que Jason, o tal ser, ainda não morreu. Deve estar sendo reanimado em breve em qualquer estúdio hollywoodiano. A qualquer momento chegará às telas. Seria uma octalogia. Ou nonalogia? Ou decalogia? Perdi as contas: "Sexta-Feira 13 – Parte..." sabe-se lá qual! Uma tragédia cinematográfica, sem sombra de dúvidas.

                Há, porém, o gênero terror fino, inteligente, possível, real. Nesse gênero a história nos penetra aguda e contundentemente. Todos somos passivos de protagonizá-la. Pode acontecer conosco. No momento em que assistimos ao filme, nele entramos, dele participamos, sentimos a dor e o terror das vítimas. Sua falta de ar e sufocação nos tira golpes de ar; suas feridas nos ardem; suas injustiças nos trucidam. De Stephen King li e depois assisti "O Cemitério Maldito". Nele há uma parte possível e uma parte sem verossimilhança. A parte sem apoio na realidade e fruto da imaginação fértil do autor é aquela em que os mortos enterrados no secular cemitério dos índios ressuscitam no dia seguinte para perseguir e matar os vivos, mesmo e principalmente seus mais queridos entes. A parte potencialmente real é aquela que narra a morte do pequeno Gage Creed, filho do médico Louis Creed, um lindo garoto de seus três ou quatro anos, atropelado por uma enorme carreta numa estrada  federal do Maine, estado do extremo nordeste estadunidense e preferido por Stephen para palco de suas fantásticas histórias. O fato é que os Creed eram uma linda família e tinham tudo para serem felizes. Louis era um médico recém chegado com a mulher e o pequeno Gage e o futuro lhes sorria com dádivas e sucesso. Eis aí o terror desta tragédia: a morte de uma linda e pequena criança. Quem quiser assistir a este terror e sentir o que se sente vendo este filme assista "O Cemitério Maldito" de Stephen King. A volta à vida do pequeno Gage, cujo corpo foi exumado por seu próprio pai de um cemitério cristão para ser inumado em cemitério indígena na esperança de trazê-lo de volta à vida, cheio de ódio e possuído por espírito maligno, não há de causar terror. Sua morte, sim, aterroriza. O desespero de Louis aterroriza. O pai, completamente atônito e consternado, não aceita a morte da linda criança e, tresloucado, leva seu corpo triturado pela violência do choque ao cemitério indígena na esperança de vê-lo de volta à vida. Este ato tresloucado aterroriza. Stephen King é o gênio que nos põe face a face com o terror de nossos mais recônditos medos.

                Cento e treze bebês mortos numa UTI neonatal no Pará aterrorizam? O fuzilamento de João Roberto Amaral pela polícia carioca aterroriza? Querem a verdade? Não me  aterrorizaram. Senti um terror indescritível ao ver aquele filme, aquela cena em particular. Aterrorizou-me a violência que matou a criança. Aterrorizou-me a família destroçada por essa morte truculenta e precocíssima. Aterrorizou-me o pai fora de si em busca da vida do amado filho. A morte do pequeno  arrastado no asfalto há pouco tempo no mesmo Rio de Janeiro me encheu de náuseas, e refluxos, e tonteiras, e suspiros, e cefaléias. A dos bebês e a de João Roberto não. A consciência social da não punibilidade daqueles me contaminou. Desaprendi. Mais uma vez. O Brasil real, do dia-a-dia, me diz que a vida de um ser humano, de um de seus filhos, nada vale. Essa constatação me embrutece o coração. Quero matar os covardes que matam. Quero linchá-los juntamente com os que se embruteceram comigo. Depois nos acusarão de "formação de quadrilha". Patético. Não posso respeitar esta "autoridade" que não tem autoridade: a justiça, a polícia, as legisladores. São uns canalhas.

                Brasileiro tem mesmo é que se foder. O tempo da indignação já passou. Estamos no tempo da vergonha. E depois da vergonha? o que restará para nós?

               

                                                                                      ****                                                                   

 

               

                Eu estava operando um caso difícil. O doente estava sobre a mesa, a ferida aberta, a gente tentando construir a ponte de safena que lhe salvaria a perna. Um contratempo tornou óbvio que o tempo cirúrgico seria maior que o esperado. Eu operava com o residente e dois internos. Levantei os olhos e vi que eram 14 horas no relógio na parede à minha frente. Disse ao residente que continuasse e saí do campo para dar um telefonema. Liguei para o consultório e pedi à minha atendente que avisasse aos pacientes que eu estava operando um caso difícil e que não tinha previsão de hora para lá estar.

                Todos os desafios trans-operatórios foram superados. Duas horas depois cheguei ao consultório. Minha atendente me informou que alguns (algumas) pacientes não puderam esperar e preferiram remarcar a consulta. Passei, então, a atender os (as) que resolveram esperar. E sabem o que ouvi de alguns (algumas) deles(as)? Que eu havia demorado muito. Mesmo tendo recebido todos os informes que passei à minha secretária. E sabem o que esses(as) foram fazer no consultório? Escleroterapia de varizes, um tratamento estético. Basicamente.

Em suma: os (as) pacientes  que foram ao consultório fazer tratamento estético de suas pequeníssimas varizes não aceitavam o fato de eu estar com um doente (verdadeiro doente!) numa mesa cirúrgica a operar-lhe a perna tentando salvá-la da gangrena! Não imaginam nem de perto a ira que me percorria o íntimo. Tive ímpetos de mandá-las à puta que as pariu. Mas não o fiz, é óbvio. E não o fazer foi para mim um estupro. Elas mereciam. Sua ignorância é deplorável e abjeta. Sua falta de cultura e de noção merecia castigo exemplar. Brasileiro tem mesmo é que se foder. Acham que a estética é mais importante do que a doença. Não admira que não se revoltem ao ver seus filhos serem trucidados em praça pública. Brasileiro tem mesmo é  que se foder! Sem mais comentários, porque discutir o óbvio é o mais deslavado sinal de atraso.
Senti alívio. Fiquei aterrorizado por tamanha insensibilidade. Ainda há esperança para mim, quero crer.

 

 

Por Fernando Cavalcanti, em 09/07/2008

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

ENTRE FATOS E FLATOS

Diz o Amorim que os maiores prazeres são os carnais. E, dentre estes, três seriam os maiores, os mais prazerosos de se ter. Os outros seriam prazeres como qualquer prazer, mas não tão intensos quanto aqueles. E, mais ainda, os três maiores prazeres carnais teriam que ser sentidos numa determinada ordem, numa determinada sequência. Dessa forma eles gerariam um prazer maior do que se fossem sentidos isoladamente, sem a sequência ou o compartilhamento dos outros.

                Sua teoria era que o sujeito que não tem os prazeres carnais mais primitivos não pode também ter saúde mental e boas ideias, nem viver feliz e sorrindo. Entenda-se: Amorim jamais leu Freud, ou Jacques Lacan, ou Charles Melman. Creio até que nunca ouviu falar desses caras. Pois bem. Diz ele que os três maiores prazeres são foder, comer e dormir, necessariamente nesta ordem. O sujeito chegar a essa conclusão sem nunca ter lido Freud ou um de seus discípulos é um gênio, quero crer. Em suma: é um gênio esse Amorim! Freud dizia que a origem maior das inadaptações humanas à vida social é a repressão dos desejos.

                Os senhores já devem ter passado pela constrangedora situação de necessitar/desejar urgentemente fazer cocô e ter que reprimir o ato. Quem consegue raciocinar ou fazer qualquer outra coisa diante desse cenário? Ninguém. A repressão desse desejo nos torna agressivos, absortos, inquietos, nervosos, incapazes. Nada naquele momento é mais urgente: cagar é imperioso! Nem foder é possível nesse instante. Não me levem a mal.

                Não falo de luxúria. Nem de disenteria. Nem de polifagia. Falo do comum. Eventualmente todos têm desejos inadiáveis, intransponíveis, intocáveis e irretocáveis. O que eu quero dizer é que uma boa e grande mijada quando se está com a bexiga cheia é um prazer impagável. Alguém receberia dinheiro para não mijar estando com a bexiga do tamanho duma bola de basquete? Impossível. Não sei se me entendem. Não me levem a mal, repito. O safado do Amorim acha que uma boa trepada seguida de uma lauta refeição – digamos, um filé ao molho Parnasse – e uma boa soneca para completar é o céu na terra. Se lhe dermos pilha vai dizer que antes da soneca há que se dar uma senhora cagada regada a umas boas mijadas, à distância da companheira, é claro.

                Na teoria do Amorim, os prazeres dejetórios seriam uma moldura, um complemento, aos maiores prazeres do sexo, da culinária e do descanso inocente. Mas não são menos importantes, porquanto são fundamentais e necessários. São tão importantes esses prazeres dejetórios que, segundo ele, o sujeito que sofre de prisão de ventre, incontinência fecal e urinária e disúria não pode ter boa saúde mental, já não tendo a física. O sujeito pode até ter lá suas varizes que não se importará. Não lhes dará a mínima. Elas não lhe tiram nem lhe obstam os prazeres primitivos, exceto para as mulheres cuja vaidade é um dos prazeres quase carnal, e não é destes que estamos a falar. Haverá coisa mais prazerosa do que cagar mijando e peidando? Só foder, comer e dormir, nessa ordem.

                Amorim encerra sempre sua preleção sobre esses assuntos dizendo: – Cuidado! Se o sujeito se mostrar complicado, neurótico, difícil, porra louca, inadaptado, arredio, isolado, sisudo, triste... ele esconde algo. Está reprimindo alguma coisa. Pode até ser um peido!

 

Por Fernando Cavalcanti, 24.04.2008 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

HISTÓRIA COM CU NO MEIO...

                   Pensam que foi em Brasília? Não foi. Foi aqui mesmo.

            Assumiu a direção de hospital público municipal e, querendo tomar pé da situação, pediu à administradora vista do organograma. Tudo parecia dentro dos conformes quando deu de cara com um cargo de chefe da enfermaria, coisa que nunca existira naquela casa. Era um tal de Alberto, doutor Alberto. Perguntou quem seria e descobriu sua amizade de infância com o premier do município, que o tratava por “Beto” ou “Betinho”.

            Beto quase não punha os pés no hospital. Tinha duas situações na casa – uma como plantonista na emergência, outra como chefe da tal enfermaria. Como plantonista teria uma carga horária de vinte e quatro horas dividida em duas de doze, das quais só cumpria seis – e durante o dia. Como chefe da enfermaria não trabalhava. Afinal, nunca se precisou desse tipo de chefe por lá.

            Não teve conversa – mandou chamar o doutor Beto. Sem muitos dedos, deu-lhe duas alternativas: ou cumprisse a carga dos plantões, ou continuasse com as seis horas, vindo ao hospital três vezes na semana resolver as pendências da enfermaria.

            - Rapaz, faz isso comigo, não. Sou amigo do homem, ele me colocou aqui.

            - Tem jeito, não. Ou uma coisa ou outra. Pensa aí e depois me diz.

            Um mês depois mandou novamente chamar o Beto:

            - Vai dar, não. Sem condição.

            - Então vou ter que abrir um processo administrativo aqui, rapaz.

            - Pode abrir – retrucou Beto numa tranqüilidade budística.

            Abriu-se o processo com todos os efes e erres – funcionário relapso, não cumpre a carga horária, não comparece aos plantões, gasto de dinheiro público, etc. etc. etc. E o negócio seguiu os trâmites.  

            Dias depois bate o telefone do diretor. Era o secretário de saúde.

            - Fulano, há quanto tempo! Aparece qualquer dia pra gente bater um papo! Como vai o hospital? E tal e coisa, e coisa e loisa, pa-rá-rá, pê-rê-rê...

E, um monte de firula depois:

- Rapaz, estou recebendo aqui o processo do Beto. Não leve a mal, mas faz assim – não mexe com ele, não. O homem é amigo de infância do prefeito, meu chapa.

O diretor calado permaneceu. O outro continuou:

- Jogavam bolinha de gude, futebol de botão, pelada em terreno baldio, brincavam de esconde-esconde... Deixa ele no lugar dele. O homem já ligou enchendo o saco...!

Dois meses depois o diretor perdeu o cargo. O Beto? Se brincar ainda está por lá chefiando a enfermaria. E nós pagando a conta.

Fernando Cavalcanti, 04.01.2010    

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

NO TEMPO DE CRIANÇA

Outro dia escrevi sobre muros e crianças. Sobre muros que não detinham crianças (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2015/10/criancas.html). Foi sobre o tempo em que éramos tão livres que queríamos invadir os espaços fechados. Pura curiosidade. Pura vida de criança. Aos dias de hoje parece ocorrer o oposto. Ou, melhor dizendo, não ocorre o oposto. Seria o oposto se as crianças de hoje, trancadas em espaços fechados, ousassem romper o que as impede e ganhassem as ruas de pedra, os terrenos baldios, os quintais... Mas, não... Não há mais ruas de pedra, nem terrenos baldios, nem quintais... Só há o medo.

Ainda assim, e por tudo isso, talvez, as crianças chegavam a ser cruéis. Por exemplo, o que podia ser capturado como estereótipo em qualquer um de nós se resumia num ”carinhoso” apelido. Bem... muitas vezes, quase todas, não eram os estereótipos, mas algum traço físico relevante ou extraordinário o que estimulava os coleguinhas a nos apelidar. Afinal de contas, crianças não tiveram tempo para se deixar estereotipar. Ainda. Crianças são vítimas dos caprichos da natureza e da malícia de outras crianças. Sim, isso mesmo. Uma parte delas não é vítima de coisa nenhuma – em tenra idade já demonstram uma malícia que deveria ser preocupante... para a sociedade. Estimou lá o Lobaczewski em seus estudos de ponerologia que 1% a 3% das pessoas são psicopatas e que algumas já o demonstram em tenra idade. 

(Estou aqui a ponderar... Falo, não falo; falo, não falo... Decidi: – vou falar. A única coisa que se leva à campa é a tralha do que vai virar pó.)

Certa feita um coleguinha me pôs um apelido muito carinhoso. Alcunhou-me de Cadáver.  Vejam que coisa pavorosa – Cadáver! Muito magrinho e pálido, ele, já na idade da malícia de alguns, via em mim todas as características de um corpo sem vida. Cadáver. (Escrevo com maiúscula porque apelidos são escritos com letra maiúscula. Vejam aquele garoto cuja cabeleira tem cinco fios, amigo da Mônica, personagem do Maurício de Sousa, o Cebolinha. Se escrevo com minúscula corro o risco de alguém pensar que me refiro à planta.) Nas conversas era Cadáver fez isso, Cadáver fez aquilo; Cadáver joga de centroavante, Cadáver fez um gol; e por aí vai...

Tanto não havia estereótipos que mudavam os apelidos caso mudassem os traços físicos. Depois de colocar um aparelho ortodôntico, a coisa mudou – era Boca-Rica; ou Sorriso Metálico. Antes do aparelho, como os dentes se projetassem muito à frente, outro apelido – Elefante. Este último “pegou” menos, já que era enorme o contraste entre meu mirrado físico e o porte do animal. Moreno, um coleguinha que àquela época já parecia mais crescido em malícia que as demais crianças – vejam que Moreno já é um apelido – me veio com a pecha de Gambá. Tudo porque, certo dia, as coleguinhas do bairro colaram-me à testa um pequeno adesivo para “referendar” meu pertencimento aos amiguinhos do bairro e, voltando eu ao colégio marista com outro adesivo semelhante ao dia seguinte, concluiu que eu não havia me banhado. Assim, para ele, eu seria semelhante a um gambá, o bichinho que exala forte odor quando se vê ameaçado e não porque seja imundo. Paciência. As crianças às vezes são cruéis em sua ignorância muitas vezes travestida de inteligência.

Mas, por que é mesmo que estou contando tudo isso? Ah! Lembrei. Foi o seguinte.

Escreveu-me o Sérgio Moura – ou foi o Bacana? – não lembro... para dizer que nossa geração havia fracassado. Ora, imediatamente me lembrei do que o Nelson disse certa vez:

“Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo – a nossa”, disse ele.

Diz o sábio que “o que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol”. Será que nosso suposto fracasso significava que essa geração havia feito – ou não feito – algo diferente do que outras fizeram antes e isso teria determinado nosso fracasso? Bem, não parece ser isso, já que diz mais o sábio e estou humildemente inclinado a lhe dar razão:

“Haverá algo de que se possa dizer: ‘Veja! Isto é novo!’? Não! já existiu há muito tempo, bem antes da nossa época”.

Assim, se não se faz nada de novo, se não há nada de novo, se tudo que já foi feito está fadado a se repetir sem nenhuma “inovação” – a tecnologia não muda a essência – então nada de novo fizemos ou deixamos de fazer, o que invalida a hipótese de que fracassamos. E o que fizemos, digo, o que faz repetidamente o bicho-homem? Ora, assassinar, roubar, injuriar, caluniar, humilhar, onerar, adoecer o semelhante – sim! adoecemos os outros! –, litigar, enganar, mentir, trair, apunhalar... e por aí vai.

O que deveria ter dito ao Serjão ou ao Bacana, não me lembra bem, é que não, nossa geração não fracassou. Não há nenhum fracasso. O que há o ser humano. Por outro lado, fosse vivo o Nelson lhe escreveria para humildemente lhe dizer, lhe lembrar que não há a época “doente mental”, nenhuma época foi “doente mental”. O que há é o ser humano, repito. E só. Doente mental é o ser humano. Nada mais, nada menos.

Ah! Faltou falar de um outro apelido: Dentinho. Foi antes da colocação do aparelho ortodôntico aos 11 anos de idade? Não lembro... Já tinha mais de 18 anos e a Claudinha Viot só me chamava por Dentinho. Carinhosamente, devo ressaltar.

sábado, 6 de abril de 2024

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura. 

Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía cedo para o trabalho. Ele não – ficava em casa o dia inteiro. Às vezes saía, tinha reuniões de trabalho, coisas a resolver. Mas gostava mesmo era do fundo da rede. A sesta depois do almoço era sagrada. 
– “Meu trabalho é em casa, meu amor”, dizia. “É home office” ... 
Ela não se conformava. Diferente dele, saía diariamente para o emprego e voltava para casa no começo da noite. Nem o fato de ele cuidar da casa como um serviçal amenizava a frustração de ver seu homem em casa a maior parte do tempo. Cuidava do jardim, varria a calçada, limpava a piscina... E ela: – “Onde já se viu? Não faz nada! Absurdo”! E a coisa foi piorando entre ela e ele. 
Não deu outra – a separação resolveria tudo. 
“Gostamos um do outro, mas não dá mais”, disse ele a um amigo. E completou – “Mulher chata, bicho... um pé no saco”! E ainda: – “Gente boa... mas um pé no saco”. 
De fato, seria a segunda tentativa de separação, já que em vez anterior até fechara um contrato de aluguel de um apartamento onde moraria, mas acabou por rescindi-lo. O amor falou mais alto para, em seguida, a vontade de dela se afastar tornar-se insuperável. Nem pelo mais robusto amor ficaria um dia a mais naquela casa na companhia da mulher.

                                                                         ***

                Alugou um apartamentinho pequeno no Meireles, bairro nobre, a duas quadras da praia, da Avenida Beira-Mar. Podia não ter nada no cubículo, mas tinha a varanda virada para a praia. Não consta ter vista mar, já que outros prédios na frente bem podiam atrapalhar a vista. Porém, a tal varanda dava para a vastidão dos céus, dos ventos, das nuvens, do sol e da lua. Já bastava. E tinha os armadores de rede. Em suma – alugara um espaço no Céu, utilizando uma figura de linguagem bem aquém do real. 
            Não podia faltar o som. Sim, punha ali na saleta que dava para a varanda as caixas de som da radiola. Apreciava os velhos e bons toca-discos de vinil. Frequentava sebos e neles adquiria antigos e bons LP’s do tempo da adolescência. E gostava tanto de raridades que comprara recentemente de um amigo o “THE DARK SIDE OF THE MOON”, em sua posse desde os anos ’70. A bem da verdade, adquirira dois exemplares do referido LP, uma delas colocada em moldura refinadíssima como a de um NARCISO pendurada na parede para sua eterna admiração. 
            Da rede ficava a apreciar o valoroso quadro enquanto se deliciava ouvindo Clare Torry em “THE GREAT GIG IN THE SKY”... 
            –“Me arrepio todo, bicho”!, dizia ao descrever sua cena.

                                                                            ***

           Tempos depois uma loira cinquentona e exuberante engraçou-se dele. Conheceram-se na Beira-Mar, sei lá. Não demorou muito a se engalfinharem em prazeres quase diários. Descobriu nela orgasmos múltiplos e infindáveis. 
          -“Gozou trinta e três vezes, bicho! Uma loucura”! Dir-se-ia estar em transe, possuída por entidades. E, depois do episódio, saiu a falar como o Cebolinha do Maurício: tlinta-e-tlês, tlinta-e-tlês, tlinta-e-tlês... Mais – fazia pilhéria do pedido do esculápio ao enfermo: – “Diga trinta e três”! 
            Estava todo faceiro até perceber nela certas inconveniências.
            - “É louca, bicho. Quer saber detalhes do passado de minha vida amorosa” ... 
            Perguntava de tudo e de todas. E quando bebia era o diabo – demonstrava um ciúme desproporcional ao envolvimento recente. A coisa foi tão impactante que ele resolveu dar-lhe um gelo. Dava desculpas para não a encontrar. 
      A pressão alta e o diabetes mereciam cuidados. Afinal, já tinha até passado por procedimento para desentupir as coronárias. Queria mais aquilo, não. Todo cuidado é pouco, dizia. Não convinha estresses desnecessários com outro convívio improdutivo. E descia três – ou seriam tlês? – a quatro vezes na semana a uma farmácia vizinha ao condomínio para verificar se suas mazelas estavam sob controle. 
          De tanto lá ir tornou-se conhecido dos funcionários, notadamente das farmacêuticas que lá faziam o trabalho de atender os que queriam medir a pressão e verificar a glicose no sangue

                                                                            ***
 – “Senhor Amorim, o senhor está muito bem”, disse a farmacêutica certo dia e a certa altura do atendimento. 
– “Suas mãos são macias e o senhor tem uma áurea intensamente positiva. É um homem muito interessante” ..., continuou. 
– “Lembro de o senhor ter dito que não costuma beber, não é isso”? 
Ele, que já tinha notado e observado as formas da doutora, não hesitou. Respondeu: – “Não bebo, mas posso perfeitamente acompanhar amigos num drinque”. Era noite. Ele continuou: – “A que horas você está livre? Tenho lá em cima, em casa, um delicioso reserva francês tinto... Posso acompanhá-la, se quiser. Que tal”? 
Ela respondeu balançando positivamente a cabeça e mordendo safadamente o lábio inferior.
           O que Amorim não quis me confessar até hoje foi se o pessoal do Parque Manibura ainda tem ido vê-lo com a mesma regularidade após a separação e vice-versa. Afinal, a farmácia é colada no prédio do homem. 

CÓLICA PEITORAL

             ERA "malhador". Diariamente estava na academia a levantar pesos e anilhas. Mas, naquele dia...              Doeu-lhe ...