sexta-feira, 18 de abril de 2025

CONSELHOS DO AMORIM II: A CONFISSÃO

        Estou em casa em verdadeiro ócio improdutivo quando me bate o telefone portátil. Hoje em dia é difícil ser discreto e se manter inidentificável. Tudo que se diz, que se faz, que se escreve – e, por que não dizer? – que se pensa, é objeto da observação e percepção de alguém. Outro dia desses, não faz muito tempo, o sujeito foi flagrado em companhia da mulher alheia dentro de um ônibus a pelo menos três mil quilômetros de casa. Pode ser uma coisa dessas? Noutro caso, o sujeito estava em Paris, a cidade mais romântica do planeta, quando foi visto com a amante aos amassos mais feios do mundo. Então, não há esconderijo nenhum neste mundo onde se possa passar despercebido. Exceto um: o aparelho telefônico. Em que pese à existência de aparelhos identificadores de chamadas, há outro dispositivo que permite ao aparelho que chama ter seu número não conhecido e não identificado. Assim, ligo para quem quer que seja e me escondo usando este estratagema. Foi o que aconteceu comigo nesta chamada. Não pude nem poderei saber jamais saber quem foi o autor desta ligação.

                De fato, foi uma mulher. Uma voz muito suave, sensual, com inflexões expressivas. Pretendia nitidamente ser o mais feminina possível. Pretendia demonstrar auditivamente quão fêmea era. Fazia parte de seu intento. Disse logo de cara que era uma amiga do Amorim. Mais: não seria tão amiga; era mais uma admiradora. Ou por outra: admirava-me o estilo e a maneira corajosa como escrevo. Por extensão, admirava a grande amizade que une Amorim e eu. E seguiu com o que pretendia: mandar um recado ao amigo. Justificou o fato de não lhe ligar diretamente alegando que sabia da perspicácia de Amorim e temia ser identificada por ele. Em outras palavras: sou um indivíduo nada esperto. Por isso escolheu a mim a servir de leva-e-traz.

                -"Quero que lhe diga que assumo: gosto de apanhar. Nelson Rodrigues estava certíssimo." Ora, de susto não morri. Tive ímpetos de rir com uma de minhas gargalhadas sonoras e abjetas, mas confesso que senti a seriedade da moça em seu tom de voz, e a coisa perdeu toda a sua potencial hilaridade. E continuou: -"E gosto de ser mulher de malandro. Gosto que me mandem. Uma mulher só atinge a plenitude de ser mulher quando é capacho de seu homem." Mais uma vez, não foi então que morri de susto. Assustava-me, no entanto, tamanha franqueza e assunção: –"E, olha, sou letrada e estudada. Sou de boa família. Estudei na América. Não tenho o pé na favela, não, viu?" E despediu-se com recomendações expressas a que Amorim ficasse ciente imediatamente, sem demora. Com efeito, o discurso era de alguém que domina o português com esmero e perfeição. O conteúdo aparentemente chulo ganhou uma moldura de firmeza e beleza indiscutíveis. Confessar uma fraqueza de coração aberto faz ganhar a rendição de quem acusa.

                Eu, que já fui transformado em leva-e-traz a contragosto, corri a me desfazer do peso daquela confissão resoluta e implacável. Estava, como já disse, na paz do lar. Troquei meu figurino para o cenário da repartição onde o Amorim trabalha e fui lhe levar pessoalmente o recado. Ele me chamou para um café numa sala reservada e ali mesmo lhe passei o ocorrido. Despedi-me e, quando fiz menção de virar as costas para sair, ele me segurou pelo braço e ordenou: -"Quero que escrevas tudinho deste assunto e mande aos que te lêem. Principalmente às mulheres! Depois disso, dê o caso por encerrado. A não ser que surjam réplicas à altura. Veja lá! Confio no teu taco, meu chapa!"

                E aqui estou eu cumprido como fiel amigo a missão a mim creditada. E de antemão já peço aos que se sentirem incomodados que evitem me mandar recados ao Amorim: o assunto está encerrado e nova pauta urge. Também não me peçam o telefone do Amorim, que ele não usa esses aparelhos portáteis que abundam hoje em dia.  Correio eletrônico? Ele não os tem da mesma forma. Como tenho dito, Amorim prefere viver a vida de forma crua e direta. Ele considera que isso, sim, enriquece o viver.

"Quero sua risada mais gostosa

Esse seu jeito de achar que a vida pode ser maravilhosa.

Quero sua alegria escandalosa

Vitoriosa por não ter vergonha de aprender como se goza."  (Ivan Lins/Vitor Martins)

 

Por Fernando Cavalcanti, 26.10.2008    

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