Ora, estive a matutar, a remoer, e ruminar igual boi no pasto com aquela mastigação toda, e aquela baba pegajosa e elástica a escorrer pelos cantos do focinho. Mais parecido com isso não poderia ser. Quase igual, sem tirar nem pôr. E por quê? Simples: a conversa em nosso último almoço no qual esteve presente o estimado amigo Luís Miranda, marista de última hora, mas de alma marista enquanto estava no Militar. Não há a menor sombra de dúvida. Ele, Alexandre Matos e eu entramos a falar da desgraça da prática médica devida aos míseros honorários pagos por planos de saúde. E o Luís se perguntava e me perguntava como estávamos conseguindo sobreviver. Fiz lá as minhas considerações, mas, ao final, senti não haver dissecado completamente o assunto. Óbvio é que não tinha intenção de fazê-lo agora.
No entanto, estive conversando com dois amigos e colegas de profissão e eles me deram algumas dicas para explicar maneiras pelas quais o médico pode ganhar dinheiro, mesmo percebendo os baixos honorários. A mais poderosa delas é através de sua "associação" com laboratórios de exames complementares, clínicas radiológicas, fornecedores de materiais e equipamentos de alta tecnologia, e "associação" com a indústria farmacêutica. Como funciona? Igual ao mensalão. Ganham parte do lucro através da solicitação de exames complementares, da prescrição de medicamentos e da indicação do uso, nos pacientes, de materiais protéticos de elevado custo. Isso pode ser feito através de dinheiro vivo, viagens com todas as despesas pagas, ou as duas coisas. Aqui o assunto merece uma maior apreciação, sob pena de se sermos injustos com os médicos.
A biotecnologia muito avançou e a bem dos pacientes. Hoje se dispõem de próteses que substituem artérias, membros, válvulas cardíacas, ossos; máquinas que mantêm a circulação e a oxigenação do sangue em operações com o coração aberto; pinos, parafusos, porcas e fixadores ósseos para artrodeses e fixação de fraturas; colas biológicas que unem retalhos de incisões cirúrgicas e ossos da calota craniana; isso para dar apenas alguns exemplos. Longe de serem prejudiciais aos pacientes, esses equipamentos trazem enormes benefícios quando bem utilizados visto que podem até evitar operações de grande porte que de outra forma seriam necessárias para corrigir problemas ameaçadores da vida. Grandes procedimentos cirúrgicos foram substituídos por procedimentos menores trazendo grandes benefícios aos pacientes.
O problema começa quando determinado dispositivo é utilizado não para beneficiar o paciente, mas o vendedor e o médico que indica e realiza o procedimento. Nessa circunstância ocorre o oposto: submete-se o paciente a riscos desnecessários, e lesa o plano pelos elevados custos desses materiais. O dinheiro do lucro dessa "venda" vai para o bolso do vendedor do equipamento e do doutor.
Da mesma forma, laboratórios de exames complementares e clínicas radiológicas remuneram os médicos que solicitarem bastantes exames. Como estão a ganhar uma miséria pela consulta, a consulta é substituída pelos exames que, mais uma vez, podem implicar em riscos desnecessários para o paciente. Não se estabelece uma relação entre o médico e seu paciente e, para obter as informações que precisa para chegar ao diagnóstico, o médico lança mão dos exames "complementares" laboratoriais e radiológicos. Em troca, essas pessoas jurídicas repassam parte de seus lucros a esses médicos "solicitadores" de exames.
Todas essas afirmações que fiz merecem uma ressalva de importância tremenda: a grande maioria dos médicos não compactua nem se "associa" a estes "esquemas". Ao contrário, pagam pelo erro de seus pares desonestos num feedback cruel e desonroso para sua boa índole. Boa parte deles atende rápida e mal o seu paciente na intenção de "fazer volume" em número de consultas, e assim tentar transpor o desonroso honorário. Eis aí, meus caros amigos, o que está a acontecer.
É minha sincera opinião, após vinte e três anos de formado, que exercer medicina não pode mais ser encarado como um meio de vida. O médico já não é mais um profissional liberal na acepção mais completa da palavra. Entre ele e seu paciente estão o governo irresponsável e os planos de saúde. Ele nada mais arbitra sobre seus salários e honorários. Pode aumentar sua renda apenas à custa de mais trabalho, sendo necessário para isso subtrair mais tempo de sua vida. Portanto, é minha sincera convicção que os novos acadêmicos e estudantes de medicina sejam cada vez mais orientados a ter outro negócio além de sua profissão, a fim de que dele possa ganhar dignamente e não seja assim tentado a essas práticas que mancham a nobre atividade de cuidar dos males alheios. Não condiz com profissional que deve ter ampla cultura geral, equilíbrio pessoal e emocional, competência técnica, habilidades sinestésicas, visuais e auditivas e conhecimento científico contínuo e atualizado.
Para encerrar, envio fotos do que fazemos na labuta diária no centro cirúrgico de um grande hospital desta decadente cidade, na tentativa de aliviar o infortúnio do sofrimento e da dor. O primeiro caso é o de um jovem de 25 anos vítima de choque elétrico de alta voltagem quando tentava salvar seu companheiro, que morreu instantaneamente. Ele teve a mão, o antebraço e braço direitos literalmente eletrocoagulados necessitando sua desarticulação do tronco. O segundo é o de uma senhora de 61 anos, diabética e hipertensa, com uma lesão aterosclerótica obstrutiva típica do diabético, das três artérias da perna, levando à gangrena do antepé e necessitando a revascularização do membro (inferior direito) com uma ponte de veia safena invertida que agora levará sangue oxigenado para seu pé e perna, desviando-o das obstruções. As imagens obtidas numa angiografia pré-operatória servem como guia do cirurgião, que agora sabe para qual das artérias vai desviar o fluxo. As fotos mostram a ponte confeccionada partindo logo abaixo do joelho e indo até o tornozelo. As últimas imagens mostram um coto de amputação sangrante e com boas perspectivas de salvamento do membro.
Quanto acham que os planos de saúde pagariam por cada uma dessas operações? Se bem me informo, juntando as duas não dá para ganhar mil e duzentos reais brutos. E os clínicos, que não operam? Não nos esqueçamos que o MÉDICO é o clínico. Este é o grande médico. Os senhores médicos, infelizmente, estão perdidos entre a intranquilidade e a extrema responsabilidade. Creio que a intranquilidade dos míseros honorários deve ser substituída pela recobrar da consciência e autoestima, o lembrar-se de quem somos, aonde chegamos como técnicos, a obrigação de sermos humanistas e o recobrar da humildade de se saber gigante. Façamos o trabalho, mas não podemos continuar morrendo por esta causa. A sociedade tem a obrigação de lutar por uma excelente medicina. Esta excelente medicina passa necessariamente por seres humanos que são médicos, nunca por um aparelho que fecha um frio diagnóstico como em "Guerra nas Estrelas".
Por Fernando Cavalcanti, em 18.11.2008
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