domingo, 20 de abril de 2025

A MORTE DE SOFIA

  Sofia Elisabeth faleceu na sexta-feira. Eu soube hoje, domingo. Meu compadre, amigo e irmão Chico Heli, que a conhecia, lia no jornal de ontem o convite-enterro. Os jornais locais não têm obituário, de modo que se pode topar com um anúncio desse tipo até na página de esportes. Se o sujeito não gostar de esportes e lá estiver o anúncio da morte de alguém conhecido, não o saberá a tempo. Ou não saberá jamais se não ler jornais, como eu. Ninguém que a conhecia e que soube de sua morte ao tempo da mesma se dignou a avisar. "Morrer é não ser visto". Há anos eu não a via. Há anos ninguém a via. Sofia já morrera para nós, eis a verdade. Morreu pouco depois do início de sua doença crônica e incurável, há cerca de 25 anos. A vida é bem cruel, é sabido. Para alguns ela é monstruosa. Terá sido assim para ela?

                Eu a conheci em 1979, em nosso último ano do Colégio Marista Cearense. Tínhamos 17 anos. Era uma linda menina morena, vivaz, simpática, inteligente. Tinha uma beleza exótica, os olhos fundos e penetrantes, cabelos lisos e longos, de um castanho reluzente e avermelhado. O nariz fino e bem desenhado separavam aqueles olhos brilhantes e alegres. Tinha os ângulos da mandíbula baixos, o que dava a seu rosto uma irradiação forte, e lhe imprimiam simetria perfeita. Seu corpo de mulher recém-esculpido era voluptuoso e esguio, e suas formas se realçavam por suas roupas bem à moda da época. Sua voz era algo rouca e grave sem contudo perder a feminilidade assustadora e cativante. Doce e linda era Sofia Elisabeth. Estudei com ela o último ano do ginásio antes de entrarmos juntos para a faculdade de medicina em 1980.

                Naquele 1979 saudoso e repleto de romantismo ela conheceu e começou o namoro com o querido amigo Valder Silva Santos. Eles se apaixonaram e viveram um intenso e pacífico caso de amor. Eles eram perfeitos juntos. Seu romance não tinha a torridez dos amores ciumentos e possessivos, mas isso não o tornava menos pulsátil e denso. Até que a morte trágica e súbita de Valder em 1981 os separou. Ela sofreu a dor da expulsão compulsória da vida do ser amado, do cúmplice, do amante, do amigo, do futuro pai de seus filhos. E, depois da tragédia, a outra.

                O diagnóstico foi chocante. Todos começamos a morrer quando nascemos. A esse processo de morrer naturalmente juntou-se outro à vida de Sofia. E desde então passei a não mais vê-la. Nesses cerca de 25 anos eu a devo ter visto umas duas ou três vezes. E quando a via, não mais a via. Parecia-me outra pessoa. Não por mudanças em seu aspecto físico somente. Ela era outra pessoa e constatar isso me era muito doloroso. "Quem é vivo sempre aparece". Sofia nunca aparecia. Nunca mais apareceu. E agora sei que definitivamente não mais aparecerá.

                Não tive uma ligação muito forte com ela. Nem tive uma ligação superficial. Mas tivemos uma ligação muito intensa ainda que fugaz, principalmente após Valder, meu amigo de noites de estudo e algumas farras. Sinto, agora que ela se foi sem deixar possibilidades, que ela foi extirpada de mim e de muitos outros que a amavam ou a admiravam em sua beleza de ser humano simples e amoroso. Tudo em Sofia era intenso. Seu potencial era ilimitado, mas jamais o desenvolveu plenamente dadas as limitações lhe impostas. Chegou a escrever um livro em parceria com alguém, mas ela teria feito muitíssimo mais sem dúvida. Por isso ainda agora me parte o coração a certeza de nunca mais a encontrar. Essa é a angústia de todos nós: o fim inexorável. Ainda mais quando lhe foi tolhida a vida em vida. Pobres de nós e de nossas vaidades tolas.

 

Por Fernando Cavalcanti, 10/08/2008

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