quinta-feira, 20 de março de 2014

A mais pura verdade disso tudo

               ACHO que devo ser... não, não: - sou, de fato, aos diversos olhos, um sujeito pedante e maçador. Disse “diversos” e corrijo: - sou um sujeito pedante e chato aos olhos daqueles que não me conhecem. No outro extremo, onde estão os poucos que me veem o coração e todas as suas cordoalhas, o conceito que têm de mim é o mais oposto possível. Para estes, sou um gozador, um pilhérico, um bon vivant... Onde está a diferença entre os pólos? Resposta: - a diferença está no peso. Para uns sou um fardo, para outros uma pluma.
               Infelizmente, não sei onde andará o meu querido e amado amigo Casoba. Fugiu o Casoba de mim como o diabo foge da cruz. Apreciador do Pessoa, dizia ele, antes de sua voluntária abdução, e já dando toda a pinta de que nunca mais o veríamos: -“Morrer é apenas não ser visto”...  Ele, outro dado aos folguedos, chegou certa vez a dizer que eu era um pomada. E por quê? Porque, segundo ele, eu seria dado à atividade de bajular, tudo com o simples e rudimentar propósito de agradar a todos. Eu não seria um pomada interesseiro, mas um pomada conciliador ou, melhor, um pomada que a ninguém quer contrariar. Presumo que ele se risse em divertido horror ao tomar conhecimento de que renunciei àquele tipo tão etéreo. Adquiri, pelo que consta, algumas antipatias e olhares enviesados.
               Diria o Casoba, se vivo fosse e aqui estivesse, e no que eu concordaria inteiramente, que progredi deveras, posto que adquirisse alguns antiamigos. O homem não deve agradar a todos. Posicionar-se é necessário. Não se pode servir ao mesmo tempo a Deus e ao Diabo. Não sou nem um pouco afeito ao modus vivendi, por exemplo, do vereador Carlos Mesquita, comemorado por sua longa vida na vereança, e que afirmou, sem o menor constrangimento e em tom professoral: -“Sou de direita, de centro e de esquerda”... Seguramente, lá ele está na vereação há tanto tempo em consequência de sua “maleabilidade” ideológica. Essa “maleabilidade” garante seu livre trânsito em todas as questões e situações, sem que se obrigue a ater-se a princípios norteadores de conduta. (Vejam que não estou a defender o radicalismo e a intransigência, mas a atividade política é, essencialmente, uma atividade desonesta justamente porque nela aprende-se a transigir e negociar com o erro.) Dependendo do cenário, o senhor Carlos Mesquita usa a vestimenta mais adequada. E assim vai sobrevivendo lépido e fagueiro na política desta capital, eivada de subserviências, de currais, de fisiologismo e de superficialidade resolutiva.
               Esteja onde estiver o Casoba, fique ele sabendo que seu velho e bom amigo mudou. Contudo, ainda ouso tecer algumas considerações sobre essa mudança. E começaria por dizer que, na verdade, é bem provável que seu amigo não tenha mudado tanto assim. Permanece o mesmo nas boas crenças e nos bons propósitos. Imperfeito como todo ser humano, mas querendo sê-lo melhor. O que mudou foi o environment. Diria, e ao dizê-lo parecerei pedante, que esse environment mudou em demasia e para pior, bem pior.
               A primeira grande, sensível e principal mudança foi a noção de que não há o mau nem o mal; e se não há o mau nem o mal, também não há o ruim nem o pior. Se não há o mau(l), nem o ruim, nem o pior, também não há o crime, nem o criminoso, nem a vítima, por exemplo. O resultado é que a letra dos Códigos está morta. Se os Códigos são o resultado das demandas sociais orientadas por princípios e se suas leis não solucionam/mitigam aquelas, então conclui-se que mortos estão também os princípios. Eis aí a grande razão das mudanças para pior, bem pior, do environment: - a morte dos princípios. 
               Dirá alguém que estou a fazer uso de uma figura de retórica e direi que não. Afinal, os Códigos estão aí para quem quiser ler, não é mesmo? Direi que os Códigos estão, sim, escritos e bem escritos. Tão bem escritos que seus artigos são belíssimos, um primor! O que se tem que atentar é que as sanções que lá constam são um conjunto patético e anedótico de muito mau gosto. Diria ainda mais. Os Códigos trazem dentro de si, de cada um, as benesses que aliviam as sanções mais duras, levando-as a um existência meramente virtual, como se morressem tão logo viessem a existir. Nossas sanções assemelhar-se-iam a certas partículas subatômicas cuja vida se mede em bilionésimos de segundos. No Direito, dir-se-ia que o preceito secundário, a sanção, é uma farsa porquanto o preceito primário, a conduta proibida, bebeu na fonte de uma insensatez.
               Vejam como, de fato, os princípios são mais importantes do que as leis. Com a morte dos bons princípios, forçoso dizer – alguém dirá que, se não existe o mau, também não existe o bom e, portanto, não faz sentido falar em "bons princípios" –, não desapareceram as boas proibições; o que deixaram de existir foram as boas sanções. Em seu todo, pelo fato de o preceito primário pretender defender um bem precioso, como é sempre o caso com o Direito Penal, a lei como um todo reveste-se de uma aparência agradável, imponente, e até solene. O mesmo alguma vez ocorre com seu preceito secundário, que pretende estabelecer punição exemplar. Mantiveram-se as boas proibições, os bons preceitos primários, é o que se é obrigado a concluir, apenas para enganar a torcida. É nos parágrafos que se sucedem, como nos rodapés das propagandas mal intencionadas e dos contratos maldosos, que tudo é posto a perder. Neles constam os abrandamentos e as concessões a favorecer o crime e o criminoso e a lei resulta incapaz de efetivamente punir.
               Se tal está a ocorrer no campo de tão importante ramo do Direito, o que se pode esperar nas regras mais simples e mais elementares da vida social? Resposta: - o desprezo completo a elas, como estamos a ver diariamente em todas as nuanças e todos os aspectos da vida nacional. Se uma norma punível quando violada não pune, calcule-se uma regra  simples, cuja quebra levaria somente à vergonha e ao constrangimento. Se uma punição não se concretiza quando tudo prova a culpa do agente, que livra-se desdenhosamente de uma justiça morta, mais desdém ainda demonstram os que violam as regras da boa educação. A partir daí cada um age como bem entender, levado apenas por suas paixões e impulsos pessoais, no trabalho, nas ruas, no trânsito, na vida civil, enfim. E mais. Quando o Estado, o próprio Estado, deixa de cumprir a lei por se saber "superior" e inatingível, que se esperar desse caótico cenário? 
                Destarte, é perfeitamente natural que aquele que não ceda ou concorde com as nefandas e diabólicas mudanças e finque o pé na resistência à sua propagação posicione-se contra os maus elementos dela fomentadores e promotores. Esses – há milhares deles, talvez milhões – são os que não mudaram com a morte dos princípios.
               Casoba, ouça aí, meu caro amigo. Dizem que mudei, que hoje sou um sujeito que por tudo briga, por tudo cria caso, por tudo esperneia. Não sou mais, falam, aquele sorridente companheiro de trabalho, feliz da vida por estar ajudando a amenizar e confortar a dor do ser humano. Hoje sou um sujeito que segue fazendo o mesmo pelo que sofre, mas meu coração empederniu-se, inolvidável amigo. Por não suportar ver prosperar a canalhice latu senso e a canalhice oficial é que me indigno, é porque berro, é porque xingo, é porque me encho de pletoras e dispnéias. Talvez não me reconhecesses ou, quem sabe, que ao menos esquecesses o apelido com o qual me apelidaste. Enfim, na verdade verdadeira sou o mesmo. O que aconteceu foi que cresceu à minha volta a súcia boquirrota, incompetente, hipócrita e venal. Essa é a mais pura e cristalina verdade disso tudo.

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