terça-feira, 22 de abril de 2014

Quedê? e daí?

          O que salva o ser humano é a vergonha, a capacidade de se envergonhar, dizia o Nelson. Se a perdemos, não há salvação para nós. De fato, é a vergonha do flagrante o que nos reprime os instintos. Se o sujeito não se envergonha de ser flagrado pilhando cinco reais do bolso do vizinho, de que se envergonhará? Provavelmente de nada. Assim, se o indivíduo não se acanha em ser surpreendido roubando míseros cinco reais, que quantia lhe envergonhará?, já que o ato em si nada representa para ele? Seguramente nenhuma quantia que furte será capaz de lhe ruborizar.
           Quinta passada deu no jornal o seguinte. Em Ibiapina, uma cidade deste inglório e pobre Ceará, que muitos gastam o tempo a tentar ressaltar-lhe a grandeza inexistente, o sujeito morreu, no hospital, à espera de uma ambulância. O sujeito, vítima de acidente de motocicleta, morreu porque não havia, ao momento de sua entrada no "hospital", uma ambulância que o transportasse a outro hospital, na capital. A matéria não foi clara, talvez de propósito, já que nossos jornais são comprados e vendidos pelas várias e inúmeras vertentes do poder. Suas matérias são verdadeiras afrontas ao verdadeiro, sério e descompromissado jornalismo. O jornalismo que se ruboriza é aquele que se comprometeu unicamente e exclusivamente com a verdade, o que não é o caso com o jornalismo de nossa terra. Em síntese, nossos jornais informam sem nada informar, tudo parte de nossa generalizada corrupção e prática indiscriminada do faz-de-conta. 
          (Meu amigo Ciro Ciarlini participou-me, outro dia, que o O Povo é um periódico falido. Funcionaria, hoje, segundo ele, numa espelunca cujo endereço é desconhecido, sabe-se lá onde. A falência do diário teria sido a causa imediata do suicídio de seu mais conhecido e decantado sócio, o senhor Demócrito Dummar, há cerca de seis anos, se não me falha a memória. Para conferir, bati o telefone para o contato do jornal e perguntei o endereço da redação. O funcionário respondeu, sem hesitar: -"Avenida Aguanambi, 282". Quem terá se enganado? O Ciro ou o funcionário? Ainda assim, percebe-se que o jornal, no seu todo, hoje em dia está contaminado com as idéias esquerdistas e o indevido alinhamento governista de seus vários jornalistas. Um ou outro escapa. As idéias comunistas e populistas invadiram a redação do O Povo, de modo que está explicada a péssima qualidade de seu jornalismo. Tudo isso pura e simplesmente a bem da manutenção da vigência de seu principal interesse: - sua sobrevivência.)
           Segundo a matéria sobre a morte em Ibiapina, o único médico de plantão havia se deslocado para outro hospital no intuito de acompanhar paciente transferido em ambulância e em estado gravíssimo, o que está de acordo com as obrigações de um plantonista solitário em hospital primário. Assim, o desafortunado e politraumatizado motociclista encontrou um hospital sem médico e sem ambulância. (Bem feito. Quem mandou nascer no Ceará e morar em Ibiapina? Morreu sem ser socorrido, coitado...)
           Antes que se ergam de lá os críticos da motocicleta, façamos algumas básicas considerações sobre ela. É verdade que a motocicleta não é transporte que se preze. Em nosso meio, muitos de seus usuários, a maioria, julgam que ela é uma bicicleta com motor quando, de fato, ela é um carro sobre duas rodas. A diferença entre os dois conceitos é enorme. Um carro sobre duas rodas nos dá, nitidamente, a idéia da necessidade de atenção redobrada que deve ter seu condutor e de sua maior responsabilidade legal. 
          Para pilotar uma motocicleta o sujeito há de ser, em primeiríssimo lugar, um medroso de marca maior. Piloto de motocicleta que não tem medo está, desde já, mortinho da silva. É uma questão de tempo. Não sei se seria esse o caso do motociclista de Ibiapina, mas, a julgar pelo perfil dos motociclistas mortos no interior deste inglório e desprezado Estado da federação, o infeliz motociclista há de ter sido vítima de sua própria imprudência e negligência. A única forma de salvar um motociclista "corajoso" e "arrojado", característica mais marcante dos nossos, é salvá-lo de si mesmo, é tirá-lo das ruas. Para isso, há duas alternativas infalíveis: - tomar-lhe a licença e/ou pô-lo atrás das grades. Para levar a cabo essas duas eficazes medidas, é preciso apenas um Código de Trânsito claro com leis e punições severas. (O diabo é se escrever um Código sério num país em que deputados e senadores são a escória produzida do povo.)
          Mas, o que dizer da ambulância? Faltou a ambulância salvadora? Vejam os caros amigos como uma notícia de jornal escrita em dois ou três diminutos parágrafos pode conter muitíssimo mais do que sua pobreza informativa. Uma matéria como esta traz em seu bojo muito pano pras mangas. Iniciemos pelas cuecas da notícia, partindo do pressuposto que uma notícia, embora seja uma palavra do gênero feminino, tenha mais características varonis do que a princípio se suponha. Uma notícia é pra ser macho até debaixo d'água. Afinal, informar a verdade é coisa de homem e de gente corajosa, ao contrário do que se possa pensar. Fuxicos e mexericos são coisas de comadres desocupadas, ao passo que dizer a verdade na cara dos poderosos é tarefa resguardada a homens e mulheres de caráter e consciência. 
          Assim, a notícia do Diário do Nordeste – o jornal que veiculou a morte do motoqueiro – está mais pra fofoca de madame do que pra matéria jornalística séria. A notícia parece ter sido o resultado de um telefonema. O sujeito, morador de Ibiapina e eventual informante do jornal, bateu o telefone aqui pro repórter de plantão e lhe passou a informação do inusitado e trágico fato. E ponto final. O jornalista, supostamente um sujeito pensante e letrado, antes de escrever a matéria não fez a si mesmo uma meia dúzia de perguntas pertinentes a fim de esclarecer detalhes sobre essa morte, como sugestão da própria manchete, por responsabilidade da falta de uma ambulância. 
          (Percebo que estou esticando o assunto em demasia e que, na verdade, não há aqui um assunto claro.) O que eu queria saber desde o início dessa lengalenga era se, no hospital, a ambulância é mais importante do que o próprio hospital. Sim, porque, pelo que sugere a matéria em seus minimíssimos três ou quatro parágrafos, o que matou o doente foi a falta da ambulância e não a falta do hospital. Não havia ambulância para transportar o paciente para um hospital, e por isso morreu o pobre coitado. Conclui-se, então, sem a menor sombra de dúvida: - o que faltou, de fato, foi o hospital e não a ambulância. Tanto isso é verdade que a ambulância lá não estava porque havia saído para transferir outro grave doente. Portanto, fica a certeza: - não há hospital em Ibiapina.
          Não faço a menor idéia de quantos habitantes tem a gloriosa cidade, mas o que ficou claro é que ela, repito, não tem hospital que salve. Seu hospital pode até angariar votos, vacinar criancinhas, dar remédio para dor de cabeça, baixar a febre de velhinhos com gripes e resfriados e outras pequenas coisas mais, mas salvar vidas que é bom, necas de pitibiriba. 
          Dirá alguém que o hospital que salva vidas é o grande hospital, a casa de saúde de maior porte, repleta de equipamentos de última geração e alta complexidade; e direi que não, que o diminuto hospital também tem, ou deveria ter, toda a capacidade de salvar vidas, inda mais vidas ameaçadas pelos efeitos dos traumatismos, como no caso do desafortunado motoqueiro. Os leitores hão de lembrar-se do caso do médico que salvou a vida de um passageiro a bordo de um jato intercontinental há poucos anos, quando o avião cruzava o Oceano Índico. Ocorreu o seguinte.
          O passageiro apresentou um quadro respiratório superagudo, de prognóstico fatal se não resolvido em poucos minutos. Que fez o discípulo de Hipócrates? Encostou o ouvido no tórax do homem e viu-lhe no pescoço as veias túrgidas. Concluiu de imediato: - era um pneumotórax hipertensivo. Sem demora, introduziu-lhe uma agulha grossa abaixo da clavícula e transformou o pneumotórax ameaçador da vida em pneumotórax simples, que foi tratado em definitivo quando o avião pousou. Vejam que um exame clínico básico e uma agulha salvaram uma vida a 40 mil pés de altitude. 
          Esse tal de pneumotórax hipertensivo é uma condição relativamente comum em pessoas politraumatizadas. Se o motoqueiro de Ibiapina apresentasse um quadro semelhante, poderia ter sido salvo lá mesmo, sem precisão de ambulância. (Vejam que não estou afirmando que foi este o caso. É apenas uma conjectura.) Há também outras condições e distúrbios fisiológicos graves conseqüentes ao trauma que podem ser resolvidos através de medidas e equipamentos simples, mas a ambulância segue sendo a menina dos olhos dos "hospitais" do interior. 
          Assim, a matéria informaria mais e melhor se expusesse as circunstâncias do dia-a-dia desses diminutos hospitais e seus recursos materiais e humanos. Isso e a questão do trânsito mexem com os políticos e com o governo. Para que mexer com nossos patrocinadores? Deixemo-los quietos e sossegados, para que tenham tempo de maquinar sua eterna permanência no poder. O PIB do Estado cresce, há anos seguidos, mais do que o PIB brasileiro, segundo a imprensa local noticia. Pergunto: - quedê? Pergunto: - e daí?
          Encerro por aqui porque nem eu suporto mais tanta conversa... A minha e a desse povo enganador.

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