sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

"A gente só está bem enquanto dorme!"

    Adalgisa não conseguia dormir. Para não faltar com a verdade, direi que minha amiga já vinha, há algum tempo, sofrendo dessas insônias renitentes e cruéis. Dir-se-ia que seu grande desejo era a alvorada, enquanto que seu grande medo era o ocaso.
          Lia muito. Já se empanturrara de tantas páginas. Folheava revistas, semanários, jornais, o diabo. Até gibi comprara. E lia biografias, que adorava. Sabia de tudo da vida de muitas personalidades, vivas ou mortas. Os romances eram também bastante apreciados. Contudo, queria o sono, queria dormir.
          Aos dias de hoje há as redes sociais, como se bem sabe. (Diz o meu amigo Siqueira, escritor de pena hábil, que a rede social é a calçada de antigamente.) Imaginemos a calçada nos tempos machadianos. Não, não vamos tão longe. Imaginemos a calçada nos tempos do iê-iê-iê, nos tempos da Jovem Guarda.
          Sim, eram bons tempos aqueles!... Ficava-se à calçada em cadeiras de balanço até altas horas. E o que lá se fazia? Exibia-se o novo vestido, o novo figurino, falava-se da vida alheia. Enfim, as pessoas se mostravam. Tamanha interação não podia resultar noutra coisa – sabia-se da vida de todo o mundo. A fotografia era coisa cara, um hobby da elite financeira. As viagens também. Pobre viajava de carro ou ônibus e rico de avião.
          Hoje faz-se o mesmo, só que na rede social, com a vantagem do encurtamento da distância entre ricos e pobres. Hoje pobre tem máquina fotográfica e viaja de avião. Ricos e pobres fazem viagem pro estrangeiro como quem vai ali, a Sobral. Inventou-se, então, tão logo se percebeu a aproximação dos pobres dentro das aeronaves, a primeira classe e suas inúmeras vantagens e confortos. E levam-se máquinas fotográficas que não se diferenciam. Ricos e pobres têm câmeras que só não falam por falta de língua. Além disso, nem é mais necessário ter a câmera – os telefones portáteis são munidos de câmeras fotográficas tão ou mais perfeitas que as simples máquinas de hoje.
          Então, mesmo à madrugada e não mais sendo possível ir à calçada, hoje se pode ir à "calçada de antigamente". Sempre há de lá estar alguém também insone ou aproveitando sua restrita liberdade conjugal. Encontram-se uns e outros na "calçada de antigamente" a esperar o entorpecimento ou o clarear do dia. E conversam, fofocam, trocam mostras de fotografias recém obtidas, opinam sobre a chuva...
          Adalgisa queria dormir. Não conseguia. A "calçada" se esvaziava. E o que ocorreu foi que passou a cair, repentinamente, um pé d'água de proporções medonhas. É sabido o amor que o nordestino nutre pela chuva, inda mais em se tratando de chuva à madrugada. Chuva à essa hora é sinônimo de sono garantido entre cobertas quentinhas e acolhedoras ao som da água que banha o torrão árido lá fora.
          Eis que, mais que a insônia, com a chuva Adalgisa se angustiava. Mais que uma angústia comum, uma angústia mortal, de sensação de morte iminente, de anulação e extinção eternas se apoderava de minha amada amiga. Que fazer?, pensou. Correu de volta à "calçada se antigamente" com o firme propósito de acordar o povo, gritar bem alto, pedir socorro, se esgoelar e uivar como uma loba prenha faminta, prestes a dar à luz a cria que pereceria em seguida.
          Claro está que todo esse é um cenário metafórico e surreal. O que ela de fato fez? Enviou mensagem aos mais íntimos. Dizia: -"Acordem! Tá caindo uma chuva deliciosa e vocês que conseguem dormir estão perdendo!" Ora, os que estavam a dormir estavam, com efeito, a perder o espetáculo da chuva. Bem se vê que Adalgisa, como a raposa de Esopo que desistia das uvas, abria mão do sono em favor da apreciação do aguaceiro que nutria a terra. E demandava companhia para o espetáculo.
          Ninguém lhe deu ouvidos. Todos dormiam na paz. Adalgisa estava só. Após o urro inaudito, não suponho o que lhe tenha ocorrido, mas é certo que não morreu. Como sei? Cedo, pela manhã, a mãe de Adalgisa, que "passeava" pela "calçada de antigamente" e, vendo os alardes da filha na madrugada silenciosa, ainda se permitiu repreendê-la. Com um puxão de orelha virtual, disse-lhe, enfática e assumida de toda a sua autoridade : -"Vai dormir, menina! A gente só está bem enquanto dorme!" Adalgisa, então, não teve dúvidas – sua noite fora de fato um inferno.
          De minha parte, eu, que sou um fanático de frases, ainda agora me está a ribombar nos ouvidos a frase da madura senhora mãe de minha amiga: -"A gente só está bem enquanto dorme!..." É, sem a menor sombra de dúvida, a frase lapidar que está a mover em mim toda uma cólica, todo um processo, toda uma gestação de idéias e pensamentos. Nem eu mesmo sei onde irá parar...

Um comentário:

  1. Gostei imensamente do texto, pois aqui no interior de Araraquara, fazíamos sempre isso....só que com a alma mais pura que alguém pudesse crer. Hoje talvez aconteça, mas de um modo diferente.
    Até pra dormir......acabávamos adormecendo sem precisar de nada, hoje ficamos iguais aos zumbis, entupidas de remédio ,as o sono? ahhh o sono, esse não vem.
    Abraços
    Adorei o texto!

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