domingo, 29 de janeiro de 2012

Uma irretocável reputação

           Foi ali embaixo, no calçadão. Raramente ocorre de se encontrar Amorim ao calçadão, e nesse dia ele vinha meio agitado, meio "elétrico"; seu nervosismo era visível. Pus-me à sua frente, interrompendo-lhe a caminhada. 
          Disse-lhe: -"Que houve, homem?" Ele, ofegante devido ao ritmo, respondeu: -"A noiva ouviu-me conversa indevida ao telefone!", e passou a explicar como a noiva, que mora noutra capital do país, ficou sabendo de suas estripulias fora do noivado. Ele falara com ela minutos antes. Fora a última chamada que fizera no aparelho. Momentos depois conversava com um amigo, relatando-lhe como lograra conquistar a morena maravilhosa do último fim de semana. 
           O problema é que, durante a conversa, inadvertidamente ligara para  o número da noiva no aparelho portátil e ela acabou por ouvir toda a história. Que fez ela? Após ouvir tudinho em detalhes, bateu-lhe o telefone numa nova chamada. Disse-lhe: -"Moleque!" E completou: -"Nunca mais me procure!" Eis o cenário da tragédia do amigo.
          Estava de passagem comprada a ir visitá-la. Perguntava-me, moralmente zonzo pelo fato de ter sido pilhado em flagrante delito: -"Que faço?" Aconselhei: -"Liga de volta e explica que foi um mal-entendido; que a história da morena aconteceu com um amigo e não contigo!" Admitiu já ter tentado esse "argumento", mas ela não se dispôs a aceitá-lo, posto que lhe parecesse que o fazendo estaria a duvidar de seus próprios sentidos. Afinal, escutara tudo e lembrava-lhe muito bem ouvi-lo dizer ao interlocutor: -"A mulher passou comigo uma noite repleta de amor e sexo!" 
           Amorim namorava a noiva há uns cinco anos. Ela era 25 anos mais jovem. O amigo já tinha filhos, e o casamento com a mãe dos garotos terminara de forma trágica e traumática... principalmente para seu bolso. Até há pouco a ex lhe perturbava o juízo com questiúnculas irritantes. Felizmente os meninos lograram atingir a maioridade e ela não mais reunia o combustível necessário às suas empreitadas jurídicas irresponsáveis e inconseqüentes. Ainda assim, não se dissipou do espírito do amigo as más recordações. Funcionavam como uma úlcera antiga que nunca cicatrizava. Por isso sua atitude sempre reticente diante da noiva quando ela demonstrava sua intenção de casar.
          A verdade inquestionável era a seguinte. Amorim não queria casar novamente. Não era uma questão pessoal. Adalgisa era uma mulher perfeita para o enlace. Culta, jovem, viçosa, inteligente e carinhosa, sonhava ainda casar e ter filhos, tudo o que Amorim menos queria para si. É óbvio que a ela não confessaria suas mais ardilosas intenções. Dizia, quase orgulhoso de sua assumida falta de virtude: -"Sou um galinha!" Ela nem sonharia com tais coisas.                        
          O problema para Amorim, e que a jovem noiva sequer atinava,  era o abismo de 25 anos. Aos 30 se sonha, aos 55 se vive. Há uma inconciliável diferença de idéias, sentimentos, conceitos, sabedoria, experiência, expectativas, noções e crenças entre quem goza os 30 e os que amargam os 55. Mais que isso, havia o problema dos maus bofes do noivo. Seriam maus bofes ou a vida o tinha levado a tal comportamento, não importa. É sempre cômodo responsabilizar alguém ou às circunstâncias pelos maus atos que se pratica, quando na verdade é a índole a se esgoelar ao ascender à tona. Ao mau caráter é oportuno o aparecimento de uma oportunidade de justificar o injustificável, e encoberto aos olhos de um coração sensível e pronto a perdoar. Daí tira ele as maiores vantagens e impõe os maiores tributos às suas indefesas vítimas. 
          Não queria o casamento, embora estivesse envolvido até os sapatos com toda a família da pequena. Sua família sonhava vê-la casada. Mais – sonhava com a tradicional cerimonia católica seguida da pomposa recepção. Dinheiro havia. Manter-se-ia a tradição: as despesas de tais festividades seriam por conta do pai da nubente. Amorim, que estava a nadar em dinheiro, razão adicional para sua vida de Casanova, não gastaria um centavo.
          Tudo isso lhe causava uma impressão tremenda, e se sabia faltoso agora que a moça lhe descobria o maucaratismo. O que de fato sentia era a percepção de sua baixeza,  de sua vileza. Cristalizava-se-lhe na consciência o retrato de sua torpeza. Pela primeira vez em sua vida admitia que era um escroque. Não o fazia senão para si mesmo. Não teria coragem de o confessar  a Deus. Ou talvez até o fizesse, posto que não acreditasse em Sua existência.
          O que o incomodava era a ponta de seu caráter a aparecer em tão bisonho engano. Não queria salvar o noivado, a princípio. Queria, sim, salvar seu falso bom caráter e, depois, o noivado com a potranca 25 anos mais jovem. Os maus caracteres têm sempre a necessidade de se promover, inda mais no que diz respeito à sua virilidade inalterada à maturidade. Essas eram, sem dúvida, suas mais prementes preocupações. 
          Ao leitor desatento parecerá que minha torpe sugestão me faria cúmplice do canalha assumido. É uma conclusão precipitada. Percebi desde o início, já ao relato inicial da tragédia, que a situação do homem era certamente irremediável, dadas as circunstâncias em que ocorrera. Minha aparente tentativa era, com efeito, ao mesmo tempo, duas armadilhas. A primeira lhe aprisionaria definitivamente na desilusão da noiva, ao levá-la a perceber do que ele seria capaz em situação de perigo extremo. A segunda o obrigaria a decidir – se não lhe apetecia a idéia do casamento, que se aproveitasse da situação. 
          Nem foi necessária minha intervenção. Ele tentava, desde o flagrante, livrar sua reputação, ainda que fosse obrigado a manter o noivado. Desde o princípio lutava para manter o noivado, posto que fosse a única maneira de salvar sua boa imagem à noiva e seus familiares. Nem que desmanchasse o noivado dali a algum tempo, arranjando para isso um outro pretexto que não o auto-difamatório, precisava mantê-lo agora a qualquer custo. 
          Encerramos a conversa após várias demonstrações de exaspero do amigo. Anelo encontrá-lo em breve para saber se a jovem merece o homem com quem está a se relacionar.

2 comentários:

  1. A história apenas se repete,não é mesmo, caríssimo amigo Francisco Cavalcante?Infelizmente para o desconforto dos protagonistas aí em questão,nada se modifica...é o preço que se paga por suas escolhas...como diria meu saudoso pai:"cada coisa no seu tempo" ,ou como nos afirma a sabedoria Bíblica: "há tempo para todo o propósito debaixo do céu",todavia o Homem não se satisfaz com esses desígnios, quer sempre retardar ou se anterpor ao curso natural do seu tempo...falo nesse sentido com relação a diferença de idade entre o casal,sendo a mulher em questão bem mais jovem,ainda assim fica em desvantagem,o homem se sobrepõe até nisso,por ser a espécie(do gênero)em extinção(risos)Bom,bem ou mal,deixo aqui minhas impressões... Abraços,amigo escritor!

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