quarta-feira, 29 de maio de 2013

Não se ensina o que não se sabe


          Perguntou-me a secretária para onde deveria enviar os pedidos de parecer que lhe chegam quase que diariamente. Meu desejo foi dizer-lhe para lançá-los à lixeira. Isso, obviamente, seria uma impertinência de minha parte, e também uma deslavada rudeza. Afinal, ela não é culpada da incompetência e do descaso dos outros. 
          Médicos Residentes estão em treinamento teórico-prático. A Residência Médica tem status de pós-graduação. Assim, lícito é argüir: - que fazem lá os Residentes? Resposta: aprendem. Ou não aprendem. No caso específico dos pareceres que eles mesmos solicitam, aprendem ao acompanhar o especialista no momento em que ele vai examinar o paciente a fim de emitir sua impressão sobre o caso e, depois, quando vão aos livros e aos tratados no intuito de um aprofundamento mínimo na matéria. 
          Entretanto, que faz a maioria dos Residentes? Faz o seguinte. Solicita o parecer por escrito e o entrega à secretária. O especialista, ao ler o que se lhe solicita, vai ao paciente para emitir o parecer e lhe responde também por escrito. Dessa forma, não entram em contato o Residente e o especialista. O especialista faz o seu trabalho e o Residente nada aprende. E estamos conversados. 
          O grande lapso de tudo isso é o hiato, o "buraco", que se estabelece na formação do Médico Residente. Durante seu estágio, ao insistir nessa prática, solicitará sempre o parecer para casos semelhantes e perderá a valiosa oportunidade de aprender. Outro lapso, não menos grave, é a constatação do lamentável e vergonhoso equívoco: - a solicitação de parecer onde não há a sua necessidade. À beira do leito, assiste-se a aula a que se não assistiu na sala; e após umas poucas delas, associadas à leitura da matéria, em breve não mais será necessário que venha o especialista. Ou somente se o chamará em caso cuja matéria seja diversa daquela. E, assim, vai-se erguendo no jovem médico em treinamento o edifício das lições inolvidáveis que levará consigo para o resto da vida como ensinamentos pétreos. 
          Partindo da evidência, pelo próprio exame do paciente, de que não havia nenhuma necessidade da solicitação do parecer, fica a impressão de que o Médico Residente é incapaz de saber até mesmo quando o solicitar. Fica também outra impressão, essa ainda mais terrificante: - a de que a especialização, a própria Residência Médica em áreas especializadas, estimula o novo especialista a esquecer e prescindir da medicina básica, da medicina que todo médico, especialista ou generalista, deve ter noção e conhecimento mínimo. 
         Assim, daqui a mais um pouco veremos médicos que não verificam os sinais vitais do paciente por terem aprendido em seus estágios de Residência Médica que isso não está incluído na sua especialidade; médicos que não auscultam o tórax de seu paciente porque o estetoscópio não faz parte de seu armamentário; médicos que não ouvem as queixas do doente porque os exames complementares já falam em demasia e porque o osso fraturado é a única coisa que lhe interessa. Com efeito, estamos em pleno exercício dessa nova e escabrosa maneira de se praticar medicina. Vemos isso todos os dias. E, assim, bem vindos à Era do Parecer. 
           Para os que não atinaram com nada do que eu disse até agora, darei um conceito mais claro sobre o que seja a Era do Parecer. Utilizar-me-ei de exemplos simples. Vejamos.
          O sujeito tem uma fratura de ossos da perna em consequência de um acidente de motocicleta, situação, aliás, mutíssimo freqüente aos dias de hoje em nossa sitiada cidade. É internado no hospital onde funciona uma Residência Médica em Traumato-Ortopedia. Vindo o Residente em Traumato-Ortopedia "ver" o paciente, solicita o parecer do Neurocirurgião, outro do Clínico Geral, outro do Cirurgião Geral e ainda outro do Cirurgião Vascular. Em dois minutos e usando apenas uma dessas esferográficas que se compram na bodega da esquina próxima ao hospital, o Médico Residente da Traumato-Ortopedia dissecou o doente em partes desiguais porque não sabe ou não quer aprender a examinar o doente da cabeça aos pés. Prefere solicitar aos especialistas que o examinem.
          Nem parece que o parecer deva ser solicitado somente quando, após avaliar e examinar o paciente como um todo, o médico constata alteração ou anormalidade com a qual não sabe lidar. Estupra-se o parecer a toda hora. Não se o quer, de fato. O que se quer é o desvio, o esquivar-se, o " empurrar com a barriga".
          Se a Residência Médica é o momento de aprender a especialidade a que o jovem médico vai se dedicar, esta é mais ainda o momento de o jovem médico aprender aquilo que é e sempre será o dever de saber de todo médico independentemente de sua área de atuação. Isso é ainda mais verdade se sua especialidade compreender procedimentos invasivos e intervenções cirúrgicas. Por exemplo, a complicação pós-operatória mais comum de qualquer procedimento cirúrgico ainda é a infecção e, dentre elas, são comuns as infecções do sítio cirúrgico, dos acessos venosos e as respiratórias. Então, como é possível que se forme um especialista em área cirúrgica que não aprenda como diagnosticar e tratar essas complicações? 
          Pergunto: - vai ele, sempre que se deparar com essas complicações, lançar mão do parecer do Clínico Geral, do Infectologista, do Pnemologista? Se estiver em local de poucos recursos humanos, onde faltam em abundância os especialistas, como fará para lidar com a situação? Mesmo em hospitais da capital muitas vezes não se dispõe de especialistas como esses. Que fará o jovem e recém egresso da Residência Médica e especialista em Traumatologia? Transferirá o paciente para hospital terciário contribuindo para sobrecarregá-lo? 
          Está além da hora dos senhores preceptores desses jovens médicos, não somente do exemplo citado mas de todas as áreas de formação de especialistas, de incutir-lhes no espírito, no coração e principalmente na razão a consciência da gravidade do problema que se apresenta. Esses preceptores são os responsáveis diretos pela qualidade técnica daqueles que formam. São eles os que devem zelar para evitar tais graves distorções e disparates, lacunas que devem ser preenchidas no momento do treinamento que a Residência Médica proporciona. Depois disso os vícios serão incorrigíveis. 
          Resta apenas uma lembrança a esses senhores: - não se aprende o que não se ensina, nem se ensina o que não se sabe. 

2 comentários:

  1. Constatação do dia a dia da nossa realidade. Desabafo fundamentado.

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  2. Vc em poucas linhas descreveu brilhantemente o fim da medicina holística, para a medicina fragmentada típica da cultura médica stalinistica.
    Abços Edson

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