Meu compadre Chico Heli esteve ontem a me tentar. Mais que uma tentação, a coisa era, de fato, uma mofa, um gracejo. Ele queria saber se eu permanecia em minha ojeriza ao futebol.
Fomos almoçar, botar a conversa em dia, jogar conversa fora. No restaurante bateu o telefone pro Marcelinho, o caçula e meu afilhado. Dali a pouco chega o garoto e resolvem: - vamos ao jogo. Às cinco da tarde, no estádio Castelão – hoje americanamente chamado "Arena Castelão" – jogariam Fortaleza e Ferroviário. (Os torcedores do Ferroviário o chamam carinhosamente de Ferrim.)
Resolvido que iriam, sacaram do telefone portátil e falaram com o amigo Denys Godin, o mais brasileiro francês que já conheci. Ele demonstrara, em certo episódio, sua vontade de conhecer o novo e, segundo dizem, maravilhoso estádio. Não deu outra: - o francês topou na hora.
(Denys é tão brasileiro, mas tão brasileiro, que resolveu se aposentar em Paris e vir morar no Brasil. Vejam que há gente pra tudo. Não apenas resolveu o Denys vir morar no "gigante" entorpecido, digo, adormecido como escolheu Fortaleza a cidade para viver o resto de seus dias. Observem que ele é um homem novo – tem 49 anos – e que "o resto de seus dias" tem tudo para ser uma penca de dias. Se assim for, Denys envelhecerá à medida que a cidade piorar, já que tudo aponta para isso. Enquanto isso, Paris...)
Assim, o grupo do Chico para ir ao Fortaleza X Ferrim estava quase formado. Faltava apenas uma pessoa: - eu! Tão logo desligou o telefone, após falar com o Denys, ele virou-se para mim e fuzilou: -"Vamos ao Castelão, bicho"? A pergunta vinha eivada da entonação que apela para o coração e para a companhia de bons amigos a se divertirem num estádio de futebol.
Ora... Por uma fração de segundos, devo confessar, admiti a possibilidade de ir com eles. A única razão para isso era a vontade de estar com os amados amigos. Contudo, lá estava ela, a ojeriza, inabalável, inteira, indubitável, genética. (Meu avô paterno detestava futebol. Até a copa de França, em 1998, eu ainda nutria por esse esporte a simpatia e o furor que muitos de meus amigos apaixonadamente lhe dedicam. Desde então, o gene de meu avô paterno pareado ao da indiferença vindo do lado materno foi ativado, assim como ocorre à certa altura da vida com outros tipos de genes que são "ligados" em determinado momento de nossas vidas.)
Os pouquíssimos leitores que tenho, além de tudo isso, devem lembrar-se do que eu já disse sobre torcer pelo Ferrim. Aos que não se recordam e aos que não tomaram conhecimento do que eu falei, repito: - a emoção daqueles que torcem por esse time de futebol é semelhante àquela do que joga ou assiste a uma partida de paciência. E não somente uma, mas cem partidas, ou mil, ou dez mil, tanto faz. Uma partida de paciência não altera em nada a frequência cardíaca do jogador nem do espectador. Ambos saem da partida em incoercível e incontrolável torpor serotonina-induzido.
Voltemos ao Chico e seu projeto de assistir pessoalmente ao chamado "clássico das cores". Que fiz, afinal, após um leve, muitíssimo leve ímpeto de acompanhá-los? Resposta: - neguei-me peremptoriamente. A recusa foi tão veemente que nem Marcelinho, meu afilhado, ousou tentar-me convencer. Voltei para casa e eles foram-se à "Arena". O Chico me falava, durante o almoço, de um tal Iarley, contratado pelo Ferrim, jogador de excepcionais qualidades que fizera não sei quantos gols num time cujo nome justo agora me escapa. A esperança ia de vento em popa com a recente aquisição do para mim desconhecido Iarley: - o Ferrim havia de botar o Fortaleza no saco. (A bem da verdade e com exceção das sumidades, todo jogador de futebol é para mim, repito, um ilustre desconhecido.)
Hoje, ao abrir um de nossos péssimos periódicos, deparo-me com a seguinte notícia: "Ferrão leva sacode". Que significa isso? Fui ver. E achei o seguinte: - o Ferroviário levou do Fortaleza uma coça, uma goleada, uma "lavagem", como se diz na gíria do futebolês. Perdeu de 4 X 0. Não houve Iarley que desse jeito. Olhando a escalação, publicada no jornal, percebi que o elenco coral incluía até mesmo um ator de cinema, o Jack Chan. O repórter deve ter-se enganado pois o nome correto do homem, que de fato é seu ocidental pseudônimo, é Jackie Chan.
Só agora percebo que não falei o principal. E o mais importante a ser dito é que o Chico e o Marcelo torcem pelo Ferroviário. Como na genética da ojeriza pelo futebol, pai e filho torcem pelo sofrido Ferrim, que de tanto apanhar nem mais assusta. E melhor. De tanto apanhar, o Ferrim, que a reportagem chamou de Ferrão, nunca perde torcedores para a conhecida "virada de casaca". (Ia esquecendo de dizer que o Chico torce pelo Ferrim porque seu pai, o "véi" Heli, assim torcia, noutra demonstração da real existência de uma genética do e para o futebol, seja para a ojeriza, seja para o amor a ele.)
Os torcedores do Ferrim são verdadeiros fósseis do chamado esporte das multidões. (Tudo que se refere à multidão me enoja. Aonde vai a manada, é aonde não vou. Se ela vai para o norte, vou para o sul; se ela vai ao leste, vou para o oeste, e assim por diante.) Mas, como ia dizendo, o sujeito que torce pelo Ferrim é um baluarte, um empedernido, um teimoso de carteirinha e sindicato. Nunca, jamais, em tempo algum conheci um torcedor do Ferrão que fosse fanático, desses que choram ou brigam quando as coisas não vão bem para o time. (Para o Ferrim, quase sempre as coisas não vão bem.) O torcedor do Ferrim é, antes de tudo, um resignado, um conformado, um manso. São bem educados e não fazem barulho; nunca se metem em confusões, comuns nos estádios de futebol a propósito da imbecilização do sujeito quando parte de uma massa. (Vide o Rousseau e, se não me engano, o Rubem Braga.)
Em suma, os torcedores do Ferroviário Atlético Clube são os lordes do futebol, um esporte repleto de trogloditas e tubarões. E mais. São lordes não somente do futebol nacional, mas do futebol universal. (O futebol mundial é uma alucinação, uma miragem, uma idiossincrasia. Ele só existe como mercado. Nele se vendem tênis da Nike e camisetas do Messi. O legítimo futebol, o verdadeiro, o real é, de fato, universal. Quando o homem puser os pés em Marte há de surpreender um Fla X Flu marciano com uma Arena lotada.)
Há pouco bati o telefone para o Chico. Ele não atendeu. Estou absolutamente convicto de que nada tem a ver com a humilhante derrota de seu time para o Fortaleza ontem. Pro Marcelo não ligo. Ele está muito ocupado estudando para fazer um concurso público. Padrinhos são pais que ficam na reserva. Sem trocadilhos.
Coitado do Chco Eli...Foi uma "sova de coivaras" como diz o Gomes Farias...Torcer é bom..Futebol idem.Mas, torcer Ferrim é demais.rsrsrrs
ResponderExcluirKkkkkkkkkk!...
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