domingo, 25 de maio de 2014

Gente sumida

          Muito tempo depois de eu ter-lhe enviado uma mensagem, uma amiga me escreveu. E justificava-se: -“Não tenho tempo!”
          De fato, há muito não a vejo. Para o poeta, “morrer é apenas não ser visto”. Quis dizer, certamente, que quem morre não mais é visto por todos. Ou, de outra forma, ninguém mais o vê. No caso de minha amiga, eu não a via. Outros seguramente com ela convivem. Apenas eu fui vítima de sua exclusão. Eu morrera para ela e ela para mim. Não nos víamos. Oxalá ainda possamos nos ver antes que se percam todas as chances e oportunidades.
          O que faz isso conosco? Digo, que tipo de coisa ou circunstância nos impele a uma distância cada vez maior? Se nada entre nós houve que decretasse o fim de nossa amizade e convivência, por que nos permitimos essa ausência mútua? Dirão que são as coisas da vida, eu sei. Dirão que as ocupações exclusivas de cada um é a nossa força centrífuga. Em suma: é o trabalho.
          Que diabos de trabalho temos feito, afinal? Por que o trabalho é o centro de todos nós? Se me perguntam quem sou, apenas digo meu nome. Não digo o que faço. Não sou o que faço. Se me perguntam sobre o trabalho, entabulo a conversa estereotipada sobre ele – a coisa está difícil, trabalha-se muito, ganha-se pouco, as coisas estão pela hora da morte, etc. etc. etc. E daí? Que importância tem isso? Minha amiga alega que todo o seu tempo é gasto com seu trabalho. Não tem tempo para uma conversa, para falar de si mesma, para pensar em si mesma, para jogar ao lixo as tralhas que carrega às costas.
          Um amigo adoeceu e – Deus o livre! – quase morre. A princípio apavorou-se com a possibilidade da aposentadoria precoce. Depois, como a doença insistisse em recidivar, impuseram-lhe uma compulsória licença mais alargada. Seu medo era o que faria sem o trabalho, com o que ocuparia seu tempo. Acabou por descobrir, com o muito tempo livre que lhe deram, quantas boas e proveitosas coisas pode um homem fazer e realizar se perder seu trabalho. Descobriu também como o trabalho pode ser danoso. Descobriu que as razões do trabalho – sustentar mulher e filhos, pagar hipotecas e empréstimos, bancar as aparências – podem matar. Suas coronárias estavam entupidas e, vocês sabem, coronárias entupidas são uma bomba relógio dentro do sujeito.
          Em seu tempo livre via-se morto. Conjecturava sobre o dia de sua morte – o sofrimento de seus entes, seu corpo sem vida, sua inexistência. E concluiu que ainda havia muito que fazer, o que viver. Com efeito, descobria a cada dia de seu estigmatizado ócio que nada mais havia para realizar no trabalho. Tudo já fizera. Como um vício, estava condenado a repetir indefinidamente a rotina. Em suas horas vagas passou a vislumbrar o que antes para si não existia. Pequeninas coisas o agradavam, e muitas outras ainda restavam por viver, por experimentar. Nos livros viajava. Sua imaginação transcendia. Impunham-se novos desafios, novas atividades. Relacionava-se. Relacionava-se! Tinha, agora, tempo para estar com as pessoas, ouvi-las. Quantos universos descobriu! Por quantos mundos andou!
          Minha amiga pensa que somos como as estrelas, que só morrem de velhice. Não somos como as estrelas. Morremos a qualquer hora. Ela pensa que pode abusar de perder tempo. Dizem que dinheiro não aceita desaforo. Trate-o mal e ele se vai. Bobagem. O tempo, esse sim, aceita menos desaforo ainda. O dinheiro se recupera. O tempo jamais.

Fernando Cavalcanti, 17.12.2009   

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