Muitos dos queridos amigos estão a ver navios após ler minha última crônica comentando sobre os médicos que faturam em associação a empresas. Vou explicar. Ocorre que a intitulei "As cobaias do Mesquita", e, no desenvolvimento do assunto, nada falei sobre as cobaias do Mesquita. Dirão que o título nada tem a ver com o tema. Eis que agora me proponho a esclarecer o aparente engodo.
Antes, contudo, devo lembrá-los que Nelson Rodrigues escreveu uma peça que, quando de sua primeira produção e apresentação, intitulou-a "Otto Lara Resende ou Bonitinha Mas Ordinária". Estava escrito assim mesmo, desta forma, na placa do teatro. E, se não me trai a memória, não havia realmente nada entre o Otto, seu grande amigo, e o tema da peça. O caso é que ele vivia a mexer com o amigo. Vivia a brincar com ele em suas crônicas. Não é o que acontece aqui.
Tudo começou há vários anos quando o meu querido amigo Mesquita sofreu um acidente de carro. Numa de suas fragorosas farras, o carro caiu numa ribanceira e ele sofreu um traumatismo na coluna cervical. Poderia ter morrido, mas Deus guardava-lhe vida longa e de sucesso. Com o tempo, as articulações de algumas de suas vértebras do pescoço entraram num processo degenerativo de desgaste, uma artrose, que necessitou de tratamento cirúrgico. Lá foi o Mesquita para a mesa ser operado por eminente cirurgião das bandas paulistas, que passava algum tempo por aqui fazendo não sei quê. Aqui abro um parêntese para lembrar que, nessa época, ele não era dado a se consultar com entidades do além, de forma que optou por tratamento por cirurgião vivinho da silva. Ora, o cirurgião foi escolhido por indicação de outro cirurgião da praça local que, em sua franqueza e honestidade, confessou ao Mesquita sua pouca experiência naquele tipo de operação. Assim, feitos os arranjos necessários, o cirurgião paulista e o cirurgião cearense foram juntos operar o Mesquita. O cirurgião cearense funcionou como auxiliar do pica-grossa paulista.
Não sei se por obra do destino, ou por estar vencido o sedativo que deram ao nosso Mesquita, ou se o anestesiologista estava a dormitar, o fato é que ele ouviu quando o paulista sussurrou ao cearense: -"Faz você que eu te ajudo." Ora, o cirurgião cearense é profissional respeitadíssimo, pessoa de reputação irretocável, competência técnica inegável, um excelente e honrado médico de branco, como diria o meu amigo Casoba. Dali em diante Mesquita esteve sob os efeitos de anestesia geral. Ao acordar horas mais tarde, no entanto, passou a ruminar sobre o que ouvira. Ruminava igual a boi no pasto a mastigar aquele mato verde e inquebrável, a engolir várias e várias vezes, com o mato lhe voltando obstinadamente à boca repleta daquela saliva espessa e pegajosa. Não lhe saía da mente o paulista a dizer ao cearense "faz você que eu te ajudo"; e ruminava também o que lhe dissera o franco e honesto cirurgião cearense: "não tenho experiência nesse tipo de operação". Entretanto, tudo correu bem e nosso querido Mesquita saiu de alta em perfeito estado. O talho que lhe fizeram no pescoço cicatrizou que quase não se percebe. As dores no pescoço cederam completamente. Enfim, curou-se o Mesquita do incômodo problema, exceto por um mínimo detalhe: uma seqüela para deglutir.
Ora, o Mesquita come mais do que os bois ruminantes. Olhem os bois no pasto. Não param de mastigar e comer. Passam ali o dia inteiro a comer e a fazer cocô. Quem não conhece o Mesquita creia: a comparação é perfeita! Exceto pelo cocô, que o meu amigo não come e evacua ao mesmo tempo como os bois, ele come o mesmo ou mais que eles. Isso fez realçar ainda mais sua seqüela deglutiva: sempre que engole, o homem vira a cabeça para o lado, sempre o mesmo lado, como a dirigir o bolo alimentar na direção correta. Não importa onde esteja, se na cozinha de casa, se no Picanha do Cowboy, se no restaurante do Waldorf Astoria, é sempre a mesma coisa: o Mesquita engole sua comida com a cabeça a pender para o lado. E é aí que entram as frases dos exímios médicos que o operaram e que ele nunca deixou de ruminar: "faz você que eu te ajudo" e "não tenho experiência nesse tipo de operação". Chegou, então, à conclusão fatal e inevitável: funcionou como cobaia do cirurgião cearense. Sim, fizeram-no de cobaia, de objeto de teste e de treinamento de um profissional médico. Passou, então, a alardear em todos os lugares – em festas, em reuniões, no estádio de futebol, no avião em suas viagens à América, na sauna, na academia, nas reuniões de seu condomínio, nos batizados, no confessionário ao padre, nas sessões espíritas ao médium, para os surfistas ao seu lado sobre as ondas - enfim, para todos, que adquiriu esse "pequeno defeito" por ter sido cobaia de um médico. A coisa ganhou tal e qual dimensão que o apelidaram de "cobaia".
Então, escrevi o último texto falando da questão dos míseros honorários pagos aos médicos por parte dos planos de saúde e o intitulei "As cobaias do Mesquita", querendo sugerir que, em verdade, os médicos é que estão sendo cobaias de seus pacientes, nas mãos dos planos de saúde. Está aí explicado todo o caso. Não esqueçam que o Mesquita adora adoecer de pequenos males. Para ele, um resfriado ganha proporções tsunâmicas dadas as implicações que pode ter. A conclusão a que chego é que o homem adora dizer-se seqüelado. É coisa mínima e quase imperceptível. Só serve mesmo às nossas gozações. A ele serve a se manter minimamente doente eternamente. E isso ele adora!
Por Fernando Cavalcanti, 21.11.2008