Aqui não se usam casacos, ou sobrevestes, ou botas. Certa vez presenciei a gozação de alguém por alguém usar essas botas que só se usam em lugares de clima frio. Riam-se da outra, pobre mulher.
Somos pobres. Mas agora, ou melhor, já há algum tempo, temos como conseguir dinheiro mais facilmente – mas não menos barato - para financiar certos sonhos. Os sonhos são, via de regra, uma demanda por aquisição material, de modo que o dinheiro consegue realizá-los com alguma facilidade. Certas felicidades só se concretizam com esses caprichos evanescentes.
Ainda que se escrevessem bilhões e bilhões de Eclesiastes, ainda assim não seriam lidos. O único que foi escrito até hoje quase ninguém lê. É uma questão muito simples – a verdade é pessimamente recebida. Detesta-se a verdade. Não há um único e mísero ser humano que dela goste. Mesmo que esteja ali, cristalizada, desenhada no espelho, marcada nos lençóis, a verdade é abominável, deplorável, algo parecido a um animal desprezível e peçonhento.
Deixemos o Eclesiastes que há muita gente a jogar suas Bíblias ao lixo. Usemos outra fonte, o A Doutrina de Buda, do Siddharta Gautama. Lá as verdades, digo, os ensinamentos são em tudo semelhantes aos do Eclesiastes, exceto pelo fato de Salomão confessar seus erros e insensatezes ao Deus que abandonara. Talvez devêssemos ir também ao escritos de Aristocles, vulgo Platão, que acreditava na perenidade de uma essência do homem, numa alma sobrevivente, numa vida no além e, sobretudo, nas verdades que ensinam que as virtudes e o desprendimento nesta vida são as verdadeiras fontes da sabedoria e felicidade; ou ainda aos de Sêneca em cartas enviadas ao seu (fictício?) amigo Lucílio, onde pregava o viver uma vida virtuosa e reta como a chave para a paz interior e acesso à admiração e respeito dos homens.
E o que dizem as verdades, digo, os ensinamentos? Dizem que o estúpido e o insensato buscam os prazeres da carne e as riquezas materiais. Os gregos iam além. Achavam que a atividade política era o meio de que os homens deviam se servir para alcançar a sociedade justa e ideal através do exercício da virtude na função pública e em seu dia a dia.
Voltemos às botas, aos casacos e aos sonhos. A mulher, uma linda e desavisada mulher, usava botas em plenos pouco mais de três graus de latitude sul, aos vinte e oito graus à noite. Que faziam as outras? Mangavam. Debochavam. E – cá entre nós – o conjunto era lindo e faziam a mulher exalar uma sensualidade incomum. Pensei: é seu sonho. Entre comprar uma passagem para a América do Norte ou Europa, preferiu realizar seu sonho aqui mesmo, com as botas até os joelhos, mesmo com o suor a lhe descer por todos os poros.
Uma mulher esperta, sem dúvida. Fosse outra teria feito a viagem que não podia com o dinheiro que não era seu. Os outros pobres não dariam a mínima. Afinal, todos estão fazendo o mesmo. O sucesso é ter, numa flagrante afronta a todas as verdades e ensinamentos dos antigos e sábios. E não é apenas uma afronta; chega a ser um pisoteio e um completo desprezo, denotando a aversão àquelas verdades. De fato, nem se ensinam mais essas coisas ou, se ensinam, parece que se está falando de coisas que aconteceram e foram escritas e ensinadas em outro mundo. Fala-se como que de uma terra do nunca, uma espécie de quimera, de loucura a que não se deve prestar muita atenção. Discuti-las serve ao propósito pouco útil de fazer parte do cabedal de conhecimentos de alguém que se interesse um pouco mais.
Eu não ia escrever nada disso, mas me perdi. Eu ia falar de como nós aqui no Ceará somos pouco criativos e que justamente por causa de nossa pobreza devíamos ser muitíssimo mais inventivos. Se o clima é quente, devíamos usar indumentária própria. Onde estão os estilistas? Criar algo realmente novo para aqui se vestir seria um excelente feito. Ao contrário, vivemos imitando os que moram em regiões mais frias, com seus paletós e roupas pesadas. A linda mulher de botas foi a única vítima da chacota, mas de fato todos nós o somos – queremos ter e usar o que não nos é próprio e apropriado.
Ia falar que não deveríamos ter carros. Somos pobres, carros são caros. Mesmo o dinheiro mais fácil tem um custo elevadíssimo. Comprar carros nos torna mais pobres já que a maioria lança mão do empréstimo, enricando as instituições financeiras e empobrecendo sua família. Devíamos usar motocicletas e bicicletas. Seriamos mais limpos, mais rápidos e menos pobres. Com o tempo teríamos dinheiro sobrando. Até os assaltantes teriam menos o que assaltar e, dentro da pressão por ter o que não podem ter, a possibilidade agora real de também poder ter a motocicleta ou a bicicleta os deixaria menos tentados a recorrer ao crime para consegui-lo. (No fundo a opção pelo crime é uma questão de maus bofes, mas angariemos para nós os arautos dessa – mais uma – insensatez.) Nossas ruas não teriam asfalto; seria um calçamento perfeito e bem nivelado. (A Companhia de Água e Esgotos poderia cavar e tapar seus buracos com mais rapidez, evitando assim deixar os gestores municipais de cabelo em pé por questiúnculas ridículas.) O calor seria menor. Em suma, seriamos mais felizes.
Enquanto não brota a nossa criatividade, penamos. O cearense está absolutamente convicto de que é o povo mais empreendedor do mundo. Setores da imprensa local, refletindo o que propagam nossos políticos medíocres a quem bajulam, vez ou outra escrevem nos jornais locais essa mentira descarada. Mal sabem – na verdade bem sabem – que empreendedor, por definição, é aquele cuja ideia resolve o problema de muita gente de forma barata e factível. Exemplo: Muhammad Yunus, o bengali que bolou uma forma barata de financiar os pobres. Mas essa é uma história à parte.
Fernando Cavalcanti, 14.02.2011
[Sou uma pobre feliz proprietária de um par de botas, usáveis somente em Tianguá e adjacências.] De fato, criatividade é produto em falta por aqui... alie-se isso às exigências profissionais, e tem-se algo muito próximo do caos: homens suando em bicas em ternos, gravatas e camisas de manga comprida; mulheres quase identicamente derretidas.
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