Sou conhecido nas rodas de meus amigos por não gostar de futebol, não ir a estádios e não ir a botecos ver futebol em telões.
Recentemente estamos a trocar figurinhas meu amigo Siqueira e eu, ele um torcedor apaixonado, eu a fina flor da frieza em se tratando desse assunto. O fato é que ele me enviou uma belíssima crônica onde descreve o bonito cenário quando todos na família gostam de futebol. Os filhos na companhia dos pais, estes na companhia daqueles, o avô, a avó e até a secretária do lar, todo mundo é bem vindo a esse momento de união e gozo pelo simples prazer de estar junto. E, vamos e venhamos, nada há de mais prazeroso do que a família em harmonia e reunida; no estádio de futebol ainda mais, que o clima lá já é de festa. Todos são ganhadores. Nem que a derrota do time querido esteja à espreita, já vale a pena. A crônica do Siqueira tudo revela, tudo diz.
Antes de ontem, se bem me lembro, eu o encontrei no hospital. Ele ia meio apressado, mas ao me ver a cumprimentá-lo de longe pela crônica, parou e veio ao meu encontro. E aproveitou para tecer ainda mais loas ao futebol familiar. Ato contínuo, queria me convencer a ir ao jogo que ocorreria à noite entre o Ceará e o Fluminense carioca. Melhor dizendo, ele queria mesmo era me convencer de que eu era um tolo por não gostar de futebol, que eu estava perdendo um grande naco da vida em assim agindo. E pus-me a explicar que também meus filhos não gostam de futebol, etc. etc. etc.
Lembro em criança meu pai me levando ao Presidente Vargas. Eu adorava - tardes ensolaradas de domingo, Fortaleza provinciana de ventos frescos, charanga do Gumercindo, a pequenina torcida do Ferrim, o populacho da do Ceará, tudo isso no cimento especial. Quando era clássico eu não gostava. Todos viam o jogo em pé e eu via bulhufas. Torcia pelo time do meu pai. Ontem mesmo o Chico dizia que o filho tem de torcer pelo mesmo time que torce o pai, senão é caso de desconfiar de negão na história. (Ele diz isso porque torce pelo Ferrim. Torcer pelo Ferrim só mesmo com a influência do pai.)
Passando o tempo, ia cada vez menos ao estádio e a assistir cada vez menos futebol pela televisão.
Pois para o jogo entre a equipe cearense e a carioca me convidavam o Siqueira, o Casoba, e o Chico só não me convidou porque ele próprio não ia. O Siqueira dizia que o Ceará iria passar uma sola no time carioca. Ia ser uma barbada, sem dúvida. Eu me mantinha firme. Nada de estádio, nada de futebol. Ao invés, o Chico me convidou a irmos a uma churrascaria, jogar conversa fora, comer uma picanha. Aceitei o convite. Fomos o Chico, o Mendes e eu.
E conversávamos e ríamos quando percebi o inevitável: ligaram o telão. Deduzi que iria passar o jogo do Ceará. Dentro em pouco a churrascaria estava repleta de torcedores – do Ceará, é óbvio - e gente querendo ver o jogo. O que era para ser um lazer, um momento de paz e silêncio entre amigos, tornou-se de repente uma balbúrdia e um pequeno inferno. Aqui demonstro que meu caso não é ojeriza pura e simples. Tolerei estoicamente o barulho, a falta de educação e incontinência do povo, as demonstrações ridículas da paixão vazia. Escapei ileso, e mais firme ainda em minha decisão sobre o futebol.
Assumo que não abandonei totalmente minha participação em um ou outro jogo. Quando é inevitável, como o foi na churrascaria, acabo assistindo um pouco da partida. O melhor é que não sofro como aqueles apaixonados que lá se esganavam. E por um simples motivo: torço sempre por quem está ganhando. Explicando melhor, é o seguinte. Não tenho um time fixo para torcer. Se tenho a chance de torcer por vários times, torço por todos o que puder, precisamente aquele que está ganhando o jogo que estou sendo impelido a assistir.
No telão da churrascaria, lá pelas tantas, o Fluminense do Rio de Janeiro aplicava a maior coça que o Ceará recebera nos últimos anos. E eu ali no canto me vingava dos incautos torcedores, torcendo pelo time de fora. E foi melhor assim porque, terminada a partida, foram todos para casa dormir para esquecer o infortúnio. Eu continuei na churrascaria comemorando a vitória do meu time do momento.
Admito que certa vez me dei mal. Foi num jogo entre o mesmo Ceará e o São Paulo. Nesse eu fui ao estádio. Ainda não fora vítima da decisão anti-futebol. O jogo me interessava por uma razão inusitada: era o 13º jogo da loteria esportiva. Dois amigos e eu fizéramos um jogo cheio de duplos e triplos. Queríamos acertar os treze pontos. Gastamos uma nota para fazer essa aposta. À medida que o jogo evoluía conferíamos o cartão quanto aos outros resultados no radinho de ouvido. Estávamos acertando tudo. Os treze pontos se erguiam ante nossos olhos como uma possibilidade real e única. Para o jogo do Ceará havíamos marcado coluna 2, São Paulo. O jogo seguia empatado e já estávamos aos 40 minutos do segundo tempo quando ficamos sabendo: fizéramos doze pontos e dependíamos apenas desse jogo para ganhar a bolada.
A casa estava cheia, só torcedores do Ceará aguardando o time desempatar e ganhar a partida. Os amigos e eu torcíamos pelo gol do São Paulo que nos levaria aos treze pontos para ficarmos milionários. Em minha mente já tinha uma lista de coisas que compraria e outras tantas que faria ao deixar de trabalhar.
Falta para o São Paulo bater. Quarenta e três do segundo tempo. Era o Zé Maria, lateral esquerdo da seleção, quem ia bater.
Bateu.
A bola passou pelo goleiro alvinegro e estufou as redes. Levantamo-nos de supetão e gritamos gol com todas as nossas forças, feito loucos varridos. Abraçávamos-nos uns aos outros freneticamente. Quase me acomete uma incontinência fisiológica , mas me contive. Estávamos ricos. Os torcedores do Ceará faziam esgares ameaçadores. “Metam-se a besta e mandamos prendê-los”, pensávamos; “agora somos ricos”. O coração não parava de saltar dentro do peito e eu o sentia na boca, quase me sufocando.
Não demorou mais de cinco minutos. O Oswald de Sousa anunciou no radinho: mais de cento e cinqüenta mil apostadores fizeram os treze pontos. O que ganhamos quase não cobre o que gastáramos na aposta.
Foi um sonho de cinco minutos. Esse foi o meu maior trauma do futebol. Depois vem o Brasil e faz aquele papelão na França em ’98. Foi o tiro de misericórdia.
Fernando Cavalcanti, 09.02.2011
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