quinta-feira, 2 de junho de 2011

Resiliência e incertezas

Estive, por dois longos dias, pensando em demasia nas vaquinhas de meu amigo Feitosinha. Desde que se iniciou meu torturante périplo elas se tornaram a minha mais recente, mais intensa, mais premente obsessão.
Os amigos sabem de minha ojeriza pela psicoterapia. Outro dia recebi de uma amiga psicóloga um puxão de orelha. Ela dizia não entender como eu, um médico, um escritor, um sujeito “de nível”, podia pregar tal asneira. Minha resposta foi o silêncio dos que amam. Não pretendia entrar a argumentar contra quem é a favor. Se respondesse, diria que justamente por ser médico é que sou contra. Diria também da minha principal razão: os pacientes não melhoram com psicoterapia. Como médico não posso apoiar tratamento que não cura ou não alivia a dor do que sofre.
Pois dirão que minha obsessão bovina merecia sessões de psicoterapia, e direi que não, absolutamente não. E por quê? Porque o problema não é a obsessão, mas o que a suscita. Quem precisa de um remédio é seu causador, da mesma forma que o fármaco é administrado para a doença e não para o doente.
Direi do meu caso.
            Há dois longos e intermináveis dias viajo. No exato momento em que escrevo estas notas estou dentro de um avião, o terceiro desses dias. Serão vinte horas de vôo somadas a outras vinte e oito dentro de aeroportos, num total de quarenta e oito horas. Se somar as horas que antecederam o início da empreitada mas que foram de preparação à mesma – cerca de duas horas – teremos cinqüenta horas. Direi de outra forma: - há cinqüenta horas tomei meu último banho; há cinqüenta horas estou a vestir a mesma roupa; há cinqüenta horas não durmo numa cama; há cinqüenta horas não vejo um carro, uma rua, uma praça, um burburinho de vizinhança; há cinqüenta horas não vejo uma cidade que não seja do alto.
Não sei se me faço entender. Tentarei uma explanação sucinta.
            Imagine que o sujeito saia a subir numa aeronave para viajar. Ele sai, mas a certa altura percebe que já não sabe se chegará e, caso chegue, quando isso se dará. Pois é o que está a ocorrer comigo neste exato momento. Estou aqui em cima escrevendo estas notas, após ter escrito outras ao dia de ontem. Quando escrevia as de ontem não sabia eu o que ainda me reservava o destino.
            Pausa.
            Não foi o destino que me reservou tamanho caos: - foi a empresa aérea que contratei e seus funcionários. Direi que todos os males do aeroporto se complementam perfeitamente na empresa aérea que lá opera, qualquer que seja ela. Direi mais. Nunca vi duas entidades tão harmonicamente ligadas no propósito de torturar o ser humano como o aeroporto e a empresa aérea. Elas são tão complementares, tão similares, tão perfeitamente embrenhadas que difícil é dissecar uma da outra. Não há empresa aérea que preste. Todas visam tão-somente seus interesses e lucros à custa do pobre viajante.
            Eu dizia dos maravilhosos e enormes aeroportos do primeiro mundo. São fantásticos. Têm de tudo, de tudo mesmo, para elevar ao grau mais elevado de tortura a espera. O aeroporto é um local de espera. Não foi construído para o sujeito lá dormir, nem tomar banho, nem namorar, nem mesmo para o sujeito se aliviar. A água das torneiras do aeroporto do primeiro mundo – no primeiro mundo há torneiras – é liberada a muito custo. Tudo no toillete do aeroporto do primeiro mundo é feito para o sujeito que está nas últimas, pela hora da morte, quase se esvaindo. As torneiras são automáticas para desligar. E desligam rapidamente. A economia de água, esse bem precioso, é, diferente da minha, a sua obsessão. E não há papel-toalha; só o higiênico. Por quê? Porque para lavar as partes íntimas se gasta infinitamente muito mais água do que para lavar o rosto ou as mãos. Para enxugar as mãos usam-se aquelas máquinas de ar quente. Ainda estão para inventar a máquina de vento quente que não queime as partes pudendas do sujeito. Chuveiros? Aeroporto não é vestiário de campo de futebol. O sujeito pode lá ficar horas a fio e não vai tomar banho nem a tiro.
            Assim, o aeroporto é construído para esperas rápidas, ao passo que a empresa aérea impõe esperas demoradíssimas. Como conciliar tal disparate? Impossível. Dirão que as empresas oferecem hotéis e alimentação nesses casos, e é verdade. Mas, quando se espera estar em casa em determinado dia e determinada hora e esta chegada é atrasada por mais de 30 horas, tais ofertas aliviam a angústia, necessidades e compromissos do que quer chegar? E se numa mesma jornada for necessário hospedar o viajante mais de uma vez? Hotéis ofertados por empresas aéreas que não cumprem o seu contrato com o viajante não resolvem, inda mais quando há várias e várias falhas na mesma viagem.
            Voando agora, ao que parece pela última vez nesta jornada, sinto o alívio da certeza. Há cerca de quinze horas meu destino era incerto e – pior! – desenhava-se ainda mais negro com as soluções propostas.
            O alívio de uma certeza me pôs a refletir sobre elas, as certezas. Queremos as certezas, ainda que sejam algumas poucas. E quando elas nos faltam, testa-se nossa resiliência. Somos testados na capacidade de responder positivamente quando se apresenta uma situação adversa, em que a impotência é nossa maior companheira. As situações adversas não requerem psicoterapia. Elas  requerem o exercício da paciência, do autocontrole, da capacidade de dialogar e negociar e, por fim, da maturidade necessária  para suportar uma perda inexplicável.   
            O piloto anuncia o pouso. Lembro o que me ensinou meu amado amigo Rachid: “pousar é imperativo; decolar é opcional”. Estamos pousando. É imperativo voltar para casa. 

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