sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A sumidade é o antihomem

               Fui, mais uma vez, ao pai dos burros na busca não de um sinônimo, mas de uma definição. Queria uma definição “técnica” do que seria uma “sumidade”. Vejam que essa sumidade que procuro não seria um substantivo ou até o seria; antes de tudo, seria um substantivo que já traria em si uma idéia de valor e de qualidade. Pois eis que lá está que sumidade é a “pessoa que se sobressai entre as de sua classe pelo seu saber”.
               No popular, poder-se-ia dizer que “sumidade” e “pica-grossa” são absolutamente a mesma coisa ou, melhor, a mesma pessoa. Sei, sei, alguém dirá que este último é um termo de baixo calão e não negarei a verdade incontestável: - é, de fato, um termo de baixo calão. Que me desculpem os que facilmente se melindram por pouca coisa, mas garanto: - é inevitável que o tragamos à baila. Já, já verão que estou certo em assim argumentar.
               Devo admitir sem delongas e sem embromação: - houve tempo em que permiti que fatores ambientais interferissem em meus ideais. Sim, fui tolo o bastante para permitir esse deslize. A vergonha que sinto em admitir essa falha só é menor que a serena alegria de vê-la corrigida. Olhando para trás sei que a verdura dos anos seria um álibi, mas os álibis não se prestam a sanar uma dor que ainda dói: - a dor de ter causado dor. Poderia, também, esconder-me por detrás de justificativas óbvias como “é inevitável que aqui e ali causemos dor em alguém; não estamos aqui para satisfazer as expectativas alheias”. Será verdade, mas, ainda assim, a dor permanece. Mesmo o autoperdão, tão necessário a fim de que possamos seguir, não é capaz de sedar aquela dor.
               Há, porém, um excelente bálsamo para essas excruciantes entidades: - o exercício da humildade, do reconhecer-se um nada ou quase isso, para que não me venham de lá os deficientes leitores que enxergariam nisso uma autodepreciação ou autoflagelação. Humilhar-se é sagrado; é revigorante; é cristão e, portanto, agradável aos olhos do Senhor. Humilhar-se tange o ser à lonjura da empáfia, da exaltação própria e, por conseguinte, tange o ser à distância da "sumidade". 
               O que houve foi o seguinte. Uma amiga foi entrevistar-se com certo especialista, um médico. Sujeito, ao que parece, muito conhecido, muito conceituado, muito "festejado". A entrevista, marcada para as 11 da manhã, foi ocorrer somente às três da tarde e – ainda pior – durou apenas e tão-somente, quando finalmente veio a ocorrer, dois reles minutos. (Escrevamos o numeral a fim de que tenhamos a medida exata da duração desta entrevista. Aí vai: - 2 minutos.)
                Outros detalhes do que ocorreu nessas 4 horas de espera merecem uma nota. Por exemplo, o mencionado especialista, que a partir de agora será referido como "a sumidade" ou "o pica-grossa", recebeu, antes de atender minha amiga, o propagandista. Explico melhor. Minha amiga esperou, dentre outras coisas, que um propagandista de laboratório entrasse para falar com a sumidade. Se priorizou um propagandista, bem será possível que tenha dado mais importância a dois, ou três, ou quatro deles. A razão de ser do médico é o doente, mas, ao que tudo indica, para o nosso pica-grossa não é bem assim. Ele preza mais o propagandista do que aquele que sofre e – pior! – aquele que sofre esperando ou, melhor, aquele que espera sofrendo. A conclusão só pode ser uma: - a sumidade não respeita seus doentes.
               Contou-me minha amiga que a sumidade respeitava as prioridades, pessoas idosas que chegavam para ser atendidas. Ainda assim, há mérito no proceder da sumidade? Ora, este elemento é conhecido por ser uma sumidade, pelo número de pessoas que acorrem a seu consultório e por suas curtíssimas entrevistas com seus pacientes. Com os idosos terá ficado somente seus dois minutos. (Vamos dar-lhe o benefício da hipótese de que se tenha demorado mais um pouco com estas pessoas. Digamos que ficasse com elas 3 minutos, um aumento de cinqüenta porcento no tempo da entrevista.) Se ele não está a atender urgências, e de fato não está, pergunta-se: - um idoso não poderia esperar por uma entrevista de 2 minutos? Sim, poderia. 
               Em síntese, a sumidade usa critérios duvidosos e questionáveis. O único item claro no modo de agir da sumidade é sua ganância, sim, sua bocarra aberta para tragar a maior quantidade possível do vil metal. Esta, por sinal, é outra razão pela qual é conhecido o pica-grossa: - seu "sucesso" profissional.  Todos sabem. O sucesso na vida se mede pela quantidade de dinheiro que se ganha. Usando um silogismo aristotélico, se o sucesso na vida se mede pela quantidade de dinheiro que se ganha e o sucesso profissional é igual a sucesso na vida, então o sucesso na vida é igual ao sucesso profissional. Conclusão: na vida, o que importa, de verdade, é a profissão, é o trabalho. Por sua vez, tudo isso gera visibilidade, fama, posses, bens, posição, poder. Isso é o que se está ensinando aos jovens aos dias de hoje.
               A conclusão é uma dessas obviedades pétreas: - a sumidade é, na verdade, um embuste, uma farsa, uma impostura. Tudo o que visa é ver sua desmedida ambição satisfeita. Disse-me minha amiga: -"Nem se senta para ouvir"! Ou seja, ouve em pé, dirigindo-se para a porta de saída a tanger o cliente. 
               Não nos iludamos: - a sumidade não é tão sumidade assim. Ela é o que vejo incipiente nos jovens estudantes da arte de hoje. Querem ser "a sumidade", o bam-bam-bam, o que "se garante", o top... Querem ser médicos porque querem status, "sucesso", visibilidade... Não querem a sujeira, nem o sangue; não querem a necrose, nem a espessa secreção das úlceras, muito menos a fedentina das gangrenas odiosas... Se pudessem, gostariam de ser médicos sem os doentes que incomodam. Imaginem! Médicos sem doentes! Queriam, se possível, que o que sofre fosse uma virtualidade do mundo cibernético e digital, um holograma distante e poroso destituído dos inconvenientes da carne, sem as queixas, sem as dores, sem os males. Em suma, quereriam uma medicina destituída de si mesma, oca, vazia, sem razão de ser, que existisse somente para satisfazer seu desejo de "sucesso". Quero crer que a sumidade foi forjada na fôrma do "moderno", da lição que ora se ensina. 
               A sumidade que nada tem de sumidade é o protótipo do médico do futuro já atuante no presente. Dará diagnósticos e prescreverá tratamentos a partir de dados postos no cérebro digital. As secreções e o sangue enlamearão os braços do robô operador operado à distância pela "sumidade" do futuro. Se ainda demorar o Juízo, veremos o antihomem em toda sua plenitude.
               Usando o mesmo silogismo, se a sumidade é o que opera à distância e se o que opera à distância é o antihomem, então a sumidade é o antihomem. Desde já. 

4 comentários:

  1. Brilhante meu amigo Fernando: um cíntilo em luz.

    - Usando o mesmo silogismo, se a sumidade é o que opera à distância e se o que opera à distância é o antihomem,
    então a sumidade é o antihomem. Desde já.

    Asclépio

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  2. Ótimo Fernando, como sempre. Pode ampliar para outras ocupações. O centro da relação deixa de ser o paciente, ou cliente. É o ter cego em detrimento do ser.

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  3. Fernando, você disse tudo. A sociedade está mal mas ainda há esperança. Você faz parte do grupo que me inspira a ter fé, esperança e caridade, tão bem dito por Paulo em sua carta aos coríntios. Fernando Sampaio

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  4. Ser, ser, ser... É tudo o que importa neste mundo de relações cibernéticas e pouco éticas...

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