sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Relativamente irresponsável

                Preciso mais de meu trabalho do que ele de mim. Certa feita, impunha-me fazer uma viagem. Era uma viagem internacional, e havia certa urgência.
            Fui ao chefe. Disse-lhe: -“Preciso viajar”. Ele, pressionado e protegido pelo ônus do cargo, quis saber os detalhes. E lá fui eu expor os detalhes que me impeliam àquela aventura de última hora. Ao final, autorizou-me a ausentar-me das funções.
            Devo dizer que só a necessidade me pressionava a tal conduta. Interiormente não me sentia confortável. Quem iria me substituir?, era o que me indagava. Como ficaria o Serviço? O senso de responsabilidade falava bem alto.
            No final das contas, fui e voltei. Tudo funcionou sem mim. Concluí que não sou imprescindível. Minha maneira de pensar revelava um pedantismo e uma pretensão de minha parte. Considerava-me insubstituível, ainda que essa consideração resultasse de processos inconscientes. O senso de responsabilidade mascarava minha vaidade. Se morresse, ao dia seguinte haveria alguém em meu lugar, eis a verdade indiscutível. Tudo isso pode parecer incoerente, já que ao início afirmei que preciso mais de meu trabalho do que ele de mim. É apenas uma aparente incoerência.
            Assim, surge uma conclusão inusitada: - se meu trabalho pode viver sem mim mais do que eu sem ele, ainda assim, e exatamente por isso, ele merece meu mais solene e pétreo desprezo. Para mim a experiência funcionou como um ajuste ao modus brasiliensis. Deixem-me explicar.
            É o seguinte. Tudo se aprende. Em tudo e para tudo podemos ser treinados. Meu senso de responsabilidade não representa uma virtude de meu caráter. Com efeito e sem meias delongas, fui treinado para ser responsável, para cumprir à risca e sem falta as obrigações a mim impostas. E, assim como eu, existem outros e outros treinados para ser responsáveis, bem como existem muitos outros que não o foram. A experiência que acabo de relatar não me trouxe a consciência de outra coisa senão de meu treinamento bem sucedido. Cumpria-me, dali em diante, conscientemente escolher quando ser e quando não ser responsável.
            Alguém perguntará se seria isso possível, e direi que sim. Quem sou eu, dentro de uma repartição pública? Resposta: - sou um recurso humano. Estamos à idade da pedra? Outra resposta: - não estamos à idade da pedra. Mesmo os Flintstones, que viveram à idade da pedra polida, tinham lá seus recursos materiais. Os pneus de seus carros não eram exatamente pneus, mas os mesmos rolavam sobre rodas de pedra. Assim, o recurso humano deve dispor do recurso material e tecnológico para bem exercer seu mister. Há de se dispor do mínimo necessário para o funcionamento de qualquer repartição. Destarte, minha responsabilidade resultará limitada pela disponibilidade de recursos outros. Se não reconhecer essa contingência, ver-me-ei frustrado inúmeras vezes. Devo, então, pôr limites a ela sob pena de uma neurose companheira inseparável.
            O modus brasiliensis tem frustrado inúmeros cidadãos bem treinados na arte da responsabilidade. Diria até que tem feito inúmeros neuróticos dentro de nossas fronteiras. (Aos que não se recordam, o neurótico é aquele que tem plena consciência de que dois mais dois são quatro, mas não se conforma com isso.) Ou o sujeito aprende a  escolher o momento de exercer sua responsabilidade ou acabará neurótico de carteirinha e sindicato. Mais recentemente tem-se notado que o modus brasiliensis tem, além de limitado o senso de responsabilidade dos responsáveis, progressivamente avançado na direção da imposição de um estado de anomia. Dirá alguém que as leis estão aí e que vivemos sob a égide de um estado de direito. O modus brasiliensis, todos sabem, tem um princípio fundamental a lhe orientar: - o princípio do faz-de-conta. Como se está fielmente a ele submisso, conclui-se que o estado de direito e as leis são apenas uma aparência, como uma tênue nuvem a embaçar a realidade.
              A descoberta de minha relativa e provisória utilidade, após um breve período de processamento e digestão, fizeram-me mais leve, mais solto e, devo dizer, menos comprometido. Que não me venham de lá os falsos moralistas a ver em minha afirmação uma arrogância ou uma impertinência. Não é nada disso. Da mesma forma que se treinam os homens para a responsabilidade, é também possível treiná-los para a irresponsabilidade relativa. (Não entremos a comentar sobre a irresponsabilidade absoluta que esta não carece de treinamento: - ela é o resultado natural da ausência de treinamento.) Além disso, só aprendem a ser relativamente irresponsáveis os que foram otimamente treinados na dura cartilha da completa responsabilidade. Em outras palavras, só conseguirá ser elegantemente e sedutoramente relativamente irresponsável os muito responsáveis. Não sei se me faço entender. Quem entendeu, entendeu; quem não entendeu, paciência...
              A única conclusão de tudo o que disse é a seguinte. Sou tão prescindível ao meu trabalho que ele em nada precisa de mim. Sou apenas a peça a funcionar no momento, a engrenagem reparável ou não, o elo da vez, e ponto final. O que quero de meu trabalho não é o mesmo que ele quer de mim. Ele quer, dentro do princípio do faz-de-conta, que eu faça de conta que, ao passo que eu quis um dia me realizar. Hoje quero, no contexto da ineficiência pública, ser apenas um responsável relativo.
             "O que posso fazer pelo meu país"? Na escola aprendi que deveria fazer tudo. Nas ruas e repartições desaprendi a lição. Melhor relativamente irresponsável do que inteiramente neurótico.

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