quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Difamando as formiguinhas

               Disseram os jornais que o cumprimento trocado entre o Obama e o Castro foi um "gesto histórico". Eu afirmei em texto anterior: - foi um gesto litúrgico. Cá entre mim e meus pouquíssimos leitores: - sou mais eu. Digo, fico com minha impressão sobre o festejado aperto de mãos. Dirá alguém que isso é assim mesmo. As coisas se processam lentamente. A história não se faz num dia, nem em meses, nem em poucos anos. Séculos são necessários para que a história se faça. O gesto dos dois homens, na minha humílima visão, é apenas uma mudança aparente e, também, uma aceitação aparente. Tudo só na aparência, na superficialidade. De fato, na verdade verdadeira, nada mudou. Ou mudou. O que mudou foram os valores que se davam às coisas, em particular às atitudes e aos gestos. Melhor dizendo, não era o valor que se dava, mas o valor intrínseco que tinham a atitude e o gesto. Como nada mudou, o aperto de mão e os eventuais sorrisos entre esses homens, após vários episódios de frio e odioso silêncio, e levando-se na conta seus antecessores, só pode representar a plena fundação do império do cinismo. Antes as atitudes eram institucionalizadas. Hoje o institucionalizado é o cinismo. Eis aí tudo.
               Por falar em mudança, digo, em não-mudança ou em quase-mudança – poderíamos chamar de mudança mínima ou aparente –, veja-se o que pretendem os legisladores brasileiros numa tentativa de mudar o código penal vigente. (O projeto ora tramita no Senado.) Querem, por exemplo, que, condenado o sujeito por crime de corrupção, 50% da pena seja cumprida em regime fechado. Muitos festejarão, soltarão fogos de artifício, verão nisso uma grande mudança, digna de uma comemoração como em final de copa do mundo. Entretanto, no momento em que encaramos nossa realidade e percebemos que os penitenciários de colarinho branco são mais raros entre nós do que os ursos polares, passamos a entender tudo. Sim, sim, dirão que os do mensalão ampliaram subitamente e inesperadamente seu número, mas não se enfraqueceram as forças que continuam a perseguir o ministro relator do processo que condenou essas "sumidades". Estão a fazer de tudo para incriminá-lo em qualquer coisa. De dois ou três gatos pingados, a população carcerária de corruptos em todo o país foi a quinze ou vinte, pouco mais, pouco menos. (Se o código funcionasse de fato, não haveria espaço para trancafiar tantos corruptos que estão soltos neste vasto rincão.) Pois vejam que querem mudar a lei que, em 124 anos de república... não; em 513 anos de existência desta terra nos livros de história – bem ou mal contada –, querem mudar a lei que pôs quase nenhum corrupto atrás das grades. Aparentemente é para melhor, mas só aparentemente.
              É certo que mudarão a lei. Dirá alguém que a prisão dos mensaleiros e a alteração no código penal são indícios de uma mudança que se pode considerar um marco, por tudo aquilo o que acabei de falar. Vejam bem: - 513 anos e uma mudançazinha mixuruca confirmam minha tese sobre os séculos necessários à escrita histórica. O diabo é que nem o tempo histórico é capaz de mudar, de fato, as coisas que ocorrem dentro desses mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Todos viram as dificuldades encontradas para condenar esses senhores. E ainda não desistiram de reverter o quadro. É óbvio que a condenação de outros seguirá não sendo fácil. 
               Vejam os senhores. Até este ponto da crônica, o texto foi escrito ontem. Um sono incoercível apoderou-se de mim, de modo que pensei em concluí-lo outra hora, hoje ou amanhã. Outro dia, talvez. Não trago comigo nenhuma fórmula para escrever. Às vezes o que vem à mente sai num impulso, como os espasmos do diafragma numa crise emética. Outras vezes inicio o texto sem saber se o concluo em um só tempo, ou se em dois ou mais. Pois ontem sentia que não dissera tudo, que ainda havia algo a dizer. 
               Eis que leio há pouco a crônica de hoje do jornalista Fábio Campos. O título "A saúva e os corruptos"(http://www.opovo.com.br/app/colunas/fabiocampos/2013/12/12/noticiasfabiocampos,3175920/as-sauvas-e-os-corruptos.shtml). Diz lá o Fábio: "A grande 'saúva' que deixa o País em seu atávico atraso social permanece entre nós. Incólume. É a corrupção". Vejam como é, de fato, antiga a corrupção brasileira. Ela é quase hereditária e sobreviveu ilesa ao longo desses mais de quinhentos anos. Diz mais o Campos: "Os corruptos se multiplicam no serviço público feito formigas". Ou seja, hoje, nos dias atuais, no momento em que os senhores legisladores – muitos deles corruptos até o semi-eixo e desde as fraldas – estão redigindo um novo código penal mais rígido para o corrupto, o corrupto está a multiplicar-se como se multiplicam as formigas. Não sei qual o tempo necessário à reprodução desses tão simpáticos Formicidae, mas presumo que seja curtíssimo.
              (Descobri depois, na rede mundial de computadores, que as formigas-rainhas podem gerar cerca de 300 mil novos insetos em apenas uma semana. Não terá exagerado o corajoso Fábio Campos em sua comparação? Os corruptos brasileiros hão de superar as formigas em sua taxa de reprodução, sem dúvida.)
               Assim, com tantos corruptos em posições estratégicas, quem haverá de duvidar que a impunidade seguirá, na mesma proporção, incólume como a própria corrupção? e apesar do suposto aumento na rigidez da lei? 
             

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