segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O moderno é o câncer

            Ah...! como são tênues as linhas demarcadoras deste mundo! Sim, abunda a imprecisão dos limites. A ponto de induzir ao erro mesmo o mais tarimbado e atento vivente, os sutis e frágeis confins estão em toda parte, são ubíquas as delgadas fronteiras, quase imperceptíveis para todos. Quando um vê o engano, outro nada enxerga senão idiossincrasias normais, variações de qualquer coisa, estados volúveis do humor de cada um...
            Onde estariam as medidas dos sistemas métricos? Se não há o metro, a jarda, a polegada, o pé, como medir os territórios e as áreas? Como calcular as interseções? as distâncias? os limites? Aqui não há engano, não há dúvida, porquanto tantas e tantas ganâncias seriam frustradas, tantas e tantas vidas seriam em risco...
            O mesmo não se pode dizer da medida do intangível. Quando se eliminam todos os princípios, todas as referências, das duas uma: - ou se busca estabelecer novos princípios e novas referências, ou sua eliminação vai pura e simples. Sem referências e princípios, não há o erro nem o acerto; não há o certo nem o errado. “Porque onde não há lei também não há transgressão”, diz o apóstolo. Como medida do intangível, dos comportamentos e condutas, a lei aponta o infrator e o inocente. Sem ela, todos se igualam. Como manada sem rumo, todos se põem a correr sem propósito ou, melhor, em direção ao abismo cuja bocarra apenas aguarda para tragá-los.
            “Porque a lei opera a ira” – ainda no dizer do apóstolo –, eis a razão da eliminação dos limites e dos conceitos, eis a razão da insurgência. A ira de quem odeia a lei e os limites é o juízo do rebelde. Eliminada a lei, tudo é possível, tudo é permitido. Eis o que estamos a ver, eis o que estamos vivendo. Amar a lei tornou-se a nova versão da contravenção e, para ser mais verdadeiro, amá-la ou não a nova versão dos conceitos. Assim, o novo limite se colocou entre o amor e o ódio à lei. Aí estará o novo paradigma, a nova medida com que se mede um a um.
            Sendo isto ainda um abstratíssimo conceito, não se o percebe de imediato. Afinal, ainda estão a viger, bem aparentemente, os códigos. Não se rasgou nenhum em praça pública. Ainda. Sua aparência é a de que vive, é a de que vige. Mesmo o mais tarimbado e atento vivente, repito, não perceberá que, de fato, estão mortos os códigos; sua letra está morta e inútil porquanto suas cominações não se concretizam. Mas, forçoso dizer, é imperioso que existam sem existir, que pareçam que existem e que vigoram. A mentira nunca vem acompanhada de sua denúncia, de sua revelação, de sua própria acusação. Nos códigos cada artigo é uma fraude, um engano, uma falsa esperança que se vê, sempre, irremediavelmente frustrada.
            Fora dos diplomas, cresce o moderno. O moderno é o atual, é o novo, estampando o aval da nova ordem, os novos comportamentos, as novas ideias e os novos conceitos. O “moderno” traz embutido em si mesmo o selo de autenticidade que lhe licencia a ser o “correto”. Ainda que não mais existam o correto e seu oposto, ser moderno já traz implícita uma imperatividade irrevogável e irrefutável. O comando é claro: - deve-se ser moderno! O moderno credencia a aceitação do que o ostenta. Em si, ser moderno é não cultivar limites, é romper as barreiras que detêm o homem em sua sanha irrefreável, suas paixões libertas como monstros a devorar-se a si mesmo. Qual metástase difusa, as paixões invadem caracteres e antigos baluartes, gerando verdadeiras sodomas individuais.
            Em cada lar, em cada esquina, em cada instituição, tudo é moderno, tudo é atual, tudo é a negação de tudo o que antes veio. Antes era o respeito, hoje o desapreço; antes era a deferência, hoje o acinte; antes era a cortesia, hoje a inescrupulosidade; antes era o amor, hoje o ódio.  
            Antes das leis, os princípios; antes destes, os valores. Antigos, os princípios e os valores pereceram. O moderno é o câncer que nos mata todos os dias.                        

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