Eu até que tentei. Nem que fosse para ter depois sobre o que falar, tentei ver o jogo. Só consegui por quinze minutos, interrompidos constantemente por outros afazeres que julgava importantes. No frigir dos ovos, se se somassem os verdadeiros minutos que me prendi à tela não dariam nem cinco. Então, fui ler minhas correspondências.
Sou do tempo das cartas, que chegavam em envelopes brancos de beirada verde-amarela trazidas pelo carteiro. Hoje as cartas que se escrevem e se enviam desta maneira entraram para o rol das coisas que não mais existem, como os sapatos Conga, ou o Ford Galaxie. Não se vê mais nada disso. As correspondências chegam hoje via computador pessoal, através de um endereço eletrônico. Nosso endereço residencial, hoje em dia, serve apenas à entrega das contas a pagar e das cobranças do imposto de renda. Serve também para que se comprove onde se mora na hora de abrir um crediário. Fora isso, desconheço qualquer outra utilidade de se ter um endereço residencial.
Antigamente sabia-se se o sujeito era importante pelo volume de cartas que lhe enviavam. Nas festas de fim de ano media-se a importância de alguém pelo número de cartões de boas festas que recebia. E eram todos, os cartões, colocados sob a copa da árvore de Natal, junto dos presentes. Hoje qualquer borra-botas recebe uma enxurrada de correspondência em seu endereço eletrônico, a maioria, quase todas, de utilidade nula ou superficial. E – o pior! – sabe-se de antemão que aquela correspondência não é pessoal, que é coletiva.
Vejam vocês. Eu aqui sentando a pua na correspondência eletrônica e é justamente ela que me permite enviar o que escrevo para uma penca de amigos e leitores. Pois era aí onde queria chegar: o que faz rir faz também chorar. Tudo tem seus prós e seus contras. E é bem provável que haja alguém que ache o que escrevo justamente de utilidade zero e tão profundo que, usando uma do Nelson, uma formiguinha atravessaria andando com água pelas canelas. Ainda que escreva essas coisas que me servem de catarse e onde demonstre quão infeliz estou quanto a meu país, há sempre alguém, uma multidão, que não se importa com nada disso, que não dá a mínima. Talvez essa multidão esteja justamente no estádio de futebol vendo o jogo e torcendo por seu time.
Ora, é precisamente isso o que não entendo. O sujeito não torce por si mesmo, mas torce por um time de futebol. Aqui devo fazer uma ressalva a evitar ser mal interpretado. O sujeito, qualquer sujeito, pode torcer por um time de futebol, mas não sem antes torcer por si mesmo. Eu diria que o torcedor inglês, por exemplo, pode se esgoelar, pular, apupar o juiz e o adversário. O torcedor inglês adquiriu esse direito posto que já construiu o seu país. Torceu primeiro por si mesmo ao erguer suas fortes e robustas instituições. Já o brasileiro...
Vamos lembrar o que houve comigo em Sobral, quando me hospedei no hotel do padre. Simplesmente fecharam o restaurante do hotel a todos os hóspedes para dá-lo em exclusividade a um time de futebol. Eis aqui o brasileiro a torcer pelo seu time e a apupar-se a si mesmo. (Devo ser um sujeito corajoso por me aventurar a falar contra o futebol justamente no país dito do futebol.)
Para minha felicidade de Robson Crusoé, recebi de meu amigo Lineu Jucá a prova que me faltava para demonstrar quão pouco torce o brasileiro por si mesmo e pelos seus. Enviou-me o Lineu a tabela do Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS). (Devo ser também um sujeito importante para ser contemplado com o envio de documento tão esclarecedor e prova documental da total e completa idiotice e estultice do brasileiro.) O documento mostra os valores que o Sistema (entenda-se o governo) paga ao médico cirurgião, seu auxiliar, anestesiologista e hospital conveniado em alguns – apenas alguns – procedimentos cirúrgicos comumente realizados em pacientes que não têm plano de saúde. Ela também mostra os valores que os planos de saúde pagam aos médicos credenciados nos mesmos procedimentos, discriminando se o paciente paga um plano mais barato ou mais caro (enfermaria ou apartamento), segundo a tabela da Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM).
Tomemos a operação para a correção de uma hérnia inguinal. Na tabela do SUS o cirurgião ganha R$ 74,00 (setenta e quatro reais), o anestesiologista R$ 44,00 (quarenta a quatro reais), o auxiliar R$ 30,00 (trinta reais) e o hospital particular conveniado ao SUS ganha R$ 298,00 (duzentos e noventa e oito reais) para cobrir despesas diárias, alimentação, medicação, drogas anestésicas, etc., ou sejam elas quais forem (é um valor fixo). Um plano de saúde privado paga os seguintes valores à equipe cirúrgica, para o caso de um paciente portador de hérnia inguinal com plano de enfermaria: R$ 308,00 (trezentos e oito reais) para o cirurgião, R$ 100,00 (cem reais) para o anestesiologista, R$ 277,00 (duzentos e setenta e sete reais) para o auxiliar, e os custos hospitalares serão pagos segundo a conta apresentada pelo hospital.
Não há necessidade de comentário.
É uma vergonha. Ambas as tabelas. Só está verdadeiramente livre para cobrar o que quiser o hospital particular não credenciado ao SUS.
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