terça-feira, 1 de março de 2011

Uma saudade sem fim

Estive na rua, a rua de minha infância. Há muito lá não ia.
         Foi tudo obra das coincidências da vida. Um convite para uma festa e ali estava ela, a rua de minha infância, onde cheguei numa data redonda – o dia primeiro de janeiro de 1970.
          Naqueles instantes – foram dois: a chegada e a saída – tudo parou.
          É uma rua de um só quarteirão, poucas casas, pouca gente. Eu seria capaz de falar de todos. Preferiria não guardar comigo essa saudade, essa nostalgia, essa dor pelo passar do tempo, que tudo leva, tudo suprime, tudo tira, tudo apaga; só não apaga da memória dos que ainda vivem e têm algum laço com essa bendita rua. Eu sou esse; sou o que estava ali, naqueles instantes.
         Era tarde, alta madrugada. Fazia um silêncio sepulcral. Nenhum barulho das pessoas entrando e saindo, as crianças brincando na rua, uma vitrola tocando mais alto uma música, as mães conversando com as vizinhas... Não se viam aqueles meninos, adolescentes, que ficavam até tarde na calçada defronte de casa, conversando sobre seus planos, seus namoricos despretensiosos, seus méritos na escola, seus pequenos problemas com os pais... Não se viam, ainda mais cedo, naqueles terrenos baldios que logo mais seriam transformados em novas casas, os arbustos farfalharem as suas folhas e galhos, enquanto um vento frio e macio lhes acariciava a face jovem e feliz... Não se viam os meninos e meninas brincando juntos, irmãos e irmãs, de esconde-esconde, corrida maluca, carimba, jogo da velha, circo, soltando arraia depois de fabricar o “encerol” para passar na linha na intenção de cortar outra linha de outra arraia na briga do “corte”. Diziam assim: -“Vamos brincar o “corte”?
          Ah, quem me dera poder escrever um romance...! mas não posso, não conseguiria.
      Mais tarde os namoricos, que de tão sadios e puros embeberam nossas vidas dessa saudade excruciante, como uma dor que dói e dá prazer, como uma dor que dói e faz gemer.
       E entre tudo e todos, os que viviam e já não vivem, e que amávamos com todas as nossas forças porquanto por eles nossa admiração era tamanha e nossa ânsia de aprender tinha um sabor especial, uma saudade especial. Ali, naquela rua, naquela casa diante da qual parei, conheci, há mais de quarenta anos, a primeira morte, a de um amigo, um adolescente, uma criança que tudo tinha à frente e que, subitamente, deixou de existir. Seu desaparecimento me causou tão grave e negra impressão que pulava à rede de minha tia-avó e com ela dormia. Ela, sábia e amorosa, me acolhia em seu seio como a minha última salvaguarda, a minha última esperança diante do terror da morte de meu pequeno e jovem amigo. Enquanto seu pequeno corpo jazia sem vida na casa defronte a minha, velado por seus desesperados e consternados familiares, eu lutava contra aquele terror que me sufocava no seio de minha tia, e me apertava a seu corpo robusto como a uma tábua de náufrago perdido em meio a oceano revolto.
            Foram dias difíceis pelos quais, hoje eu sei, meus pais me permitiram que passasse sem leviandades ou mentiras tolas. Observavam-me, como o pastor cuidadoso, e se furtavam em me acolher ou poupar, permitindo que as verdades cruéis da vida se me apresentassem. Eu não podia compreender. Eram todos – mesmo os velhos como minha idosa e carinhosa tia-avó – imortais, imutáveis, infinitos. Para mim a vida nos congelava como éramos, como estávamos, para sempre, como em paraíso eterno. Eu não sabia que cresceria, que perderia todos eles, os que amava, como acabei por perder.
            Súbito fui interrompido desses devaneios por alguém a me chamar.
            Ainda bem e ainda mal. Há algo de masoquista em reviver um passado tão gostoso, tão perfeito, mesmo à lembrança da primeira morte de alguém que se ama. Mesmo essa morte encerra um quê de pureza e inocência que nos faz desejar o tempo de volta. Em meio ao que a adultícia nos traz isso pode ser considerado um prêmio, um presente de Deus.
            Ainda não acabei. Hei de permitir que essas lágrimas rebeldes busquem seu caminho nesta face marcada por essa rua...

Um comentário:

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...