terça-feira, 25 de junho de 2019

A MORTE COMO A GOTA D'ÁGUA

Por sorte encontrei hoje, ao almoço, o meu amigo Monteiro. Não devem conhecê-lo. Não estava a sós. Fazia-se acompanhar do Campos, outro querido amigo, imigrante temporário vindo das bandas do Piauí.
            Não sei se perceberam, mas está a ocorrer no Ceará uma invasão. Digo logo de cara e sem rodeios – o Piauí está invadindo o Ceará! Não sei se é o caso de avisar às autoridades do estado, mas quem não ainda percebeu, acautele-se.
Estamos diante de uma invasão maciça, dessas em que os invasores trazem toda a tralha e santos de pau oco. Não há um único dia em que não tropece em alguém do Piauí. E nem falo dos desconhecidos com quem cruzo nas ruas e esquinas da cidade. Cheguei a pensar que vieram resolver a questão do litígio que há sobre a divisa, mas lembrei que, após mais de cento e quarenta anos, os governos dos dois magníficos estados chegaram a um acordo há mais de dois anos. Não é, portanto, a divisa a causa da invasão.
Seria talvez o meu hábito de transeunte? (Sou um transeunte. Quem de vocês aí é transeunte? Ninguém, com certeza. Transeuntes andam a pé. Esse é dos pleonasmos mais necessários que conheço. Não se contam como transeuntes os que atravessam a rua para entrar no carro.) O hábito de se misturar ao povo impõe encontros inusitados. Bem poderia ser daí minha percepção dos invasores do Piauí.
Não seria por ser transeunte. Não ando por aí falando com quem não conheço. Só posso supor que haja milhares de piauienses entre meus companheiros transeuntes. Ademais, lembremos que no Piauí não há sotaque. Nem no Maranhão. Sejamos honestos: não há sotaque no Piauí nem no Maranhão. Se houvesse eu reconheceria um invasor do Piauí a quilômetros de distância. Ao contrário, se estiver na Cochinchina reconheço um cearense. Basta que ele emita um som, uma única vogal que seja. Portanto, não saberia dizer, dentre os transeuntes que não conheço e com quem cruzo diariamente, quem é ou não é do Piauí.
É nos hospitais onde encontro o maior número de invasores. Eis aí a verdade. São médicos, médicos residentes, enfermeiras, serviçais, etc. etc. etc. Antes da invasão piauiense, as maiores diásporas conhecidas eram a dos judeus e a dos sobralenses. Sim, o povo de Sobral espalha-se pelo mundo como formigas. De lá saíram o Renato Aragão, o Belchior, os Ferreira Gomes, os Lustosa da Costa, os Paula Pessoa, e outros, e outros, e outros. Depois veio o Casoba, o Pedro Olímpio, cujo nome foi uma homenagem a outro ilustre sobralense, o Domingos Olímpio, o Olimar, e o meu querido César Augusto Ferreira Gomes de Andrade, o “Sobral”. Seu primeiro destino foi Fortaleza. Depois invadiram o mundo. Agora o pessoal do Piauí, dentre eles o meu amigo Campos. Abster-me-ei de enumerar os invasores piauienses conhecidos, visto que, ao que parece, ainda outros virão.
Eu ia falar do Monteiro. Falemos do Monteiro. Durante o almoço me dizia ter tomado uma decisão sobre o trabalho. Queria ter uma boa qualidade de vida. Por isso recusara uma oferta de emprego, mais um emprego. E contou-me que tomara essa decisão há uma semana no cemitério, durante os funerais de alguém. Foi no São João Batista. Enquanto caminhava entre lajes e túmulos, lia os epitáfios e as datas de nascimento e morte. E pensava que estes ex-vivos tiveram uma curta vida, cheia de dissabores, esforços inúteis, sofrimentos desnecessários, alegrias efêmeras. Estava em dúvida sobre mais um emprego. Com efeito, já antes do cemitério não via com bons olhos a ideia.
Eis então que ali, entre os que já viveram e não vivem mais, seguindo o cortejo fúnebre, decidiu: -“Não vou aceitar.” E de lá saiu como se houvera tirado de sobre os ombros um peso enorme que quase o esmaga.
É sempre muito bom olhar nos olhos daqueles que estão felizes por saber o que querem na vida e da vida. Despediu-se ao final com um forte aperto de mão, como se eu tivesse contribuído de alguma forma para sua escolha.

Fernando Cavalcanti, 15.12.2010 

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