terça-feira, 25 de junho de 2019

O OBSTINADO DO PEITO

Mesmo o coração humano, um órgão engenhosamente projetado e incansável, está sujeito a irregularidades em sua atividade diária. Pode ter, aqui e ali, sobressaltos, distúrbios raríssimos do ritmo que chamamos extra-sístoles. Dentro de sua espantosa regularidade e normalidade de sua cadência ele pode ser foco desses eventos sem significado clínico.
Dir-se-ia ser o coração um obstinado. Em operações durante as quais se o pára, percebe-se sua “vontade” de voltar a bater; suas fibras continuam sua atividade contrátil, até que os métodos e manobras responsáveis por sua parada temporária como um todo sejam interrompidos e ele volte a bater forte no peito.
Em resumo, o coração é persistente, mas se dá, vez ou outra, o direito de sair do ritmo, ainda que por uma fração de segundo. Falamos do coração normal.
Observe-se que não podemos dizer ser o coração um obsessivo. Ainda que tivesse uma mind of its own, não poderíamos afirmar que seu comportamento seria obsessivo. Em doenças graves à distância, quando a vida já não é mais possível, ele pára. Deve ocorrer algo em tais casos, uma parada respiratória, por exemplo, que o leve a parar de bater. É necessário um muito grande insulto para tal. O mecanismo da morte é o “desligamento” da respiração pulmonar. Para ser obsessivo ele precisaria continuar funcionando sem oxigênio, como no corpo de um daqueles mortos-vivos do cinema. Isso não existe. Isso não ocorre.
Ser regular dá ao coração a competência que precisa ter para sua importantíssima função: enviar sangue a todo o corpo. Se seu ritmo não fosse regular ele não se encheria o bastante para realizar sua tarefa. Seria um incompetente. Daí sua constância. Seus sobressaltos raríssimos não comprometem.
Então, a competência vem da regularidade ou constância e de sua obstinação. (Óbvio é que não me aventuro nos meandros do inotropismo, já que a constância se deve às suas outras propriedades fundamentais.)
Outro dia, a propósito do quase-infarto de um amigo – se não me engano o Amorim – fiz uma analogia entre o coração e seu suprimento sangüíneo e o provedor. (Diz o Casoba que hoje não mais se infarta, visto que o avanço tecnológico chegou para abortar tais eventos indesejáveis. Daí o quase-infarto do Amorim.) Agora, deu-me na telha fazer uma entre a obstinação e a obsessão.
Obstinação, como se pode bem depreender, é uma característica benigna, não patológica. Óbvio é, no que se refere ao coração, que o órgão foi desenhado para tal. Suas propriedades básicas são as responsáveis por essa sua excelente e notável característica. Só mesmo o Gênio do universo seria capaz de obra tão primorosa. O Richard Dawkins e seus asseclas naturalistas aceitam que tudo o que há não tem necessariamente uma razão de ser, um propósito. Tudo existe porque existe e pronto final. O mais gritante é que tudo o que existe tem, de fato, uma razão de ser e um propósito. Aí está a engenhoca que é o coração humano que não me deixa mentir. E não esqueçamos os corações de outros seres. (O da jubarte é do tamanho de um Fusca.) Não seria uma doidice pensar que o coração existe com o propósito de irrigar o corpo com o sangue que dá vida se a vida não tivesse algum sentido? Se assim fosse, seria o caso de um propósito a servir a um despropósito. Se há falta de sentido em tudo, por que cada peça da vida, cada molécula, cada enzima, cada proteína, cada códon, tem uma função, um propósito, uma razão de ser? Por que há um primoroso e sofisticado código de informação no centro das células que comanda todo o processo da vida? Sabe-se que toda informação tem uma intenção e uma função. Em havendo intenção, não haveria uma inteligência por trás? Há intenção sem inteligência? Então, a obstinação, que é uma intenção e um querer persistente, serve a um propósito.
Devaneei. Voltemos à analogia.
Se a obstinação é uma virtude, a obsessão é um vício. É ela que nos castiga com a cegueira das falsas importâncias e das falsas verdades; é ela cuja medida é desmedida e cujos propósitos servem apenas a aplacar uma ânsia pessoal brotada de um nonsense idílico e onírico. Mal comparando, a obsessão assemelha-se a um tumor maligno que a tudo invade consumindo a energia, os nutrientes, o oxigênio, e tudo o que útil à vida com propósito. Cresce tanto o tumor maligno da obsessão que, qual o tumor maligno biológico, acaba por se autodestruir por se tornar maior do que seu suporte de vida. O tumor maligno é o despropósito a provar o sentido da vida. A obsessão é o despropósito que invadiu a intenção, o objetivo, o juízo e o tino; é a perda da lucidez e da prudência; é o gasto energético das forças derradeiras na busca do objeto fugidio e a se tornar etéreo.
Não há inteligência na obsessão. Há apenas a existência sem sentido tal como apregoa o senhor Dawkins. É um tumor na alma.

Fernando Cavalcanti, 14.01.2011

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