terça-feira, 25 de junho de 2019

DESCONSTRUÇÃO

Cresci e aprendi tendo o medo como chicote. Bem cedo usaram em mim a força do medo. Meu medo maior era o da reprovação, da fúria das palavras, da arma do escárnio. A dor física era melhor tolerada, se fosse desacompanhada das veemências da repreensão. Nunca uma surra era silenciosa. Vinha sempre repleta de manipulações verbais. E isso me matava um pouco. Comecei a morrer bem cedo.
Esse medo me destruiu parte da inteligência, quero crer. Ele me fazia prestar mais atenção à liturgia e aos cerimoniais, às regras e submissões do que ao conteúdo da matéria. Ainda que tivesse facilidade em aprender, muito me suprimiu o medo. Ele me paralisava. A inteligência exige liberdade, mas o medo impõe limites, e destrói a inteligência. Algo atrofia no ser que tem medo. Não há inteligência sem liberdade. Causa em mim uma surpresa enorme por ainda ter aprendido algo.
Em adolescente me cresceu na alma a vontade de não ter medo, de ser livre, de aprender sem amarras, de ousar debochar da ordem vigente. A primeira vítima foi a religião, a fôrma e a moldura da religião. Seiscentos séculos pesam como um buraco negro sobre qualquer um. Não é fácil renegar tudo isso. Foi quando minha inteligência recuperou parte, não tudo, do tempo perdido a obedecer aos rituais pela força do medo. A segunda vítima, já mais velho, foi a moral, a ética e a honra tal como me tinham ensinado. Todas juntas. Ficou bastante claro para mim que todas estavam embrulhadas no manto da hipocrisia, e que a moral,  a ética e a honra estavam sendo usadas para me manipular. E então, a terceira vítima: o ser humano. Tive de me libertar do ser humano. Descobri que ele criara o medo que me detinha, que me atrofiara, que me segurava. A religião, a moral, a ética e a honra eram todas falsas. Eram todas armas de tortura contra mim e contra minha liberdade, que o ser humano criara.
Em sua sanha manipuladora, o ser humano devora bilhões de mentes. Todos em algum momento são vítimas. A maioria fenece com a mente atrofiada, sem nunca ter logrado a libertação. Poucos se tornam livres. Menos ainda são livres já bem cedo, de tão inteligentes que são. Esses já nascem sem medo e nada há que lhes detenha. Os que têm medo os chamam de loucos, já bem cedo. Suas excentricidades atestam que, em verdade, já são livres. Por isso aprendem mais e mais facilmente. São gênios. Não têm medo. Perdi muitos anos de vida para me desfazer desse medo. Ainda hoje me querem manipular pelo medo. Creio não ser mais possível.
Em breve ficarei louco, como um gênio.  Em pouco tempo me despirei ainda mais das grades da adaptação. Entrarei para um dos extremos da  curva de Gauss. Ter medo e estar adaptado não me fez melhor. Nem a ninguém agradei. Nem aos pais fui bom o bastante. Nem aos filhos fui idolatrado. Às mulheres me tornei um pulha. Aos amigos me tornei um fardo pesado demais para se levar. Já não há razão para ter medo. Tudo o que temia perder, por ter medo, perdi. O que me resta? A liberdade dos gênios e a descompensação dos desadaptados, tomara. Se em nada creio, se só vislumbro a hipocrisia do outro, serei eu a escarnecer de tudo e todos. Se até sobre a morte me quiseram enganar, já descoberta sua cruel e fria realidade, nem a ela temerei. Sobre o amor tirei-lhe a máscara do caráter: a mais forte arma de manipulação, persuasão e chantagem.
Ah! Quisera eu ter nascido gênio! É duro, longo e tortuoso o caminho quando não se nasce com a graça. Contudo, menos mal saber que pode-se criar a própria genialidade a partir de algum momento na vida. Os inatos sentem-na como um tédio. Os que lhe são obrigados a construir a têm como um exuberante e rico tesouro.

Fernando Cavalcanti, 03.02.2009

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