terça-feira, 25 de junho de 2019

O PRIMEIRO ANO DO RESTO DE NOSSAS VIDAS

 Esse ano, em maio, fazemos cinqüenta. Somos o Baixim, o Bacana e eu. E, vocês sabem, quando se completa um ano estamos de fato iniciando a viver o seguinte. Então, ao completar cinqüenta, estamos começando ao dia seguinte a viver o qüinquagésimo primeiro. E o qüinquagésimo primeiro ano de qualquer coisa não é coisa que se despreze, inda mais em se tratando de dias de vida.
            Não sejamos pretensiosos de ter esse marco como uma metade. Há muito a vida humana deixou de ser longa. Cem anos é um feito e tanto, em que pesem as técnicas, os medicamentos modernos, o controle das pragas, e tantas outras “melhorias” da medicina. A expectativa de vida no Brasil é de 73,8 anos. No Ceará, 71. Na melhor das hipóteses temos aí mais 23,8 anos pela frente. Já passamos da metade.
            Combinamos o seguinte: esse ano será todo ele de comemorações. Afinal nos conhecemos quando ainda usávamos fraldas. Nascemos ao mesmo mês, uma diferença de dias. Estudamos juntos na escola e hoje – já se vão mais de quarenta anos – ainda estamos aqui como amigos. Sabemos tudo da trajetória da vida do outro. Estivemos juntos em quase todos os bons momentos e, mais importante, em todos os maus momentos de nossas vidas. Não são muitas as pessoas que guardam um tesouro como esse. Se computarmos outros amigos que aniversariam esse ano fazendo cinqüenta e que conhecemos a esse tanto de tempo, junte-se aí mais uma penca de malandros, bons malandros. Mas escolhi a nós três porque somos do mesmo mês.
            Em maio de 1961 nascíamos. Lembro de meu jardim de infância e de quando me vesti ao primeiro dia para a alfabetização. Lembro de meu pai, alta madrugada, pondo sob a rede onde eu dormia o triciclo – um trator de brinquedo – que eu pedira numa carta escrita por minha mãe ao Papai Noel. Ele veio de pijamas segurando aquele troço então enorme para mim. Foi assim que fiquei sabendo da verdade sobre Papai Noel. Dali em diante aprendi como as insônias são dos males mais cruéis que existem. Nesse caso em particular creio que acordei por algum barulho que ele deva ter feito em sua peregrinação noturna sob os leitos dos filhos. Deve ter sido um esforço e tanto para ele. De qualquer forma jamais fui a um psicólogo por isso, nem por qualquer outra coisa. Não fui criado para ser nada; não depositaram em mim nenhuma missão onerosa para a vida, nem fui a remediação da frustração de ninguém. Em mim não se depositaram expectativas, exceto uma: a de que fosse gente. Tive infância. Só infância. Naquele tempo ser criança era brincar, comer e dormir. Mais tarde a infância compreendia também o cumprimento das obrigações escolares, e paulatinamente crescíamos e virávamos adultos. Tudo numa assustadora naturalidade.
            Compreende-se resignadamente que nem tudo é perfeito para todos, razão pela qual se deve comemorar ainda mais e com mais regozijo. Saúde mental e afetiva não é lá algo fácil aos dias de hoje, e esta é a razão pela qual os jovens de hoje deveriam ouvir pessoas como nós. Outro dia li sobre a geração “moderna”, que teria algumas características peculiares entre elas a impaciência, a inconstância e a “perfeita noção” de seus objetivos e metas. Em suma, só ouvem o que querem. Também se estimula muito o homem técnico, a perfeição profissional e intelectual, os currículos e línguas. O intento? Estimula-se o ter. Fala-se “fulano está muito bem” quando se está referindo ao que o fulano conseguiu de posses. Não se sabe bulhufas sobre se fulano está bem. Fulano está um trapo, uma confusão metal, afetiva e espiritual, mas está “bem”.  
            Sei, sei. Alguém dirá que essa lengalenga de que o ontem foi melhor que o hoje é sempre assim. Talvez. Mas, o que se vê? Não são fatos? Nós, que vivemos as duas épocas que se seguem, vemos ou não vemos o que nelas se passou? É possível que estejamos cegos para as coisas novas, que não compreendamos as alternâncias do modo de viver das pessoas, que não captemos o que o meio está a nos dizer com seus sinais mais gritantes. É possível. Mas há épocas sabidamente difíceis, como a época das guerras gerais. Há de também ter havido época de júbilo e sensação coletiva de felicidade em algum lugar neste mundo. Há, assim, épocas melhores e épocas piores, não necessariamente as mais antigas sempre melhores que as que se lhe seguem. Não parece ser assim. Então, seria essa uma época de dificuldades?
            Freqüentemente as épocas difíceis se associam ao obscurantismo e à falta de conhecimento. Como seria possível que esta seja uma época difícil se o conhecimento abunda de forma barata e fácil? Nunca em todos os tempos parece ter havido tanta facilidade para se obter conhecimento e, no entanto, as aflições estão aí a nos incomodar e a nos evidenciar que, sim, esses são dias difíceis. Por quê? Aventuremo-nos a supor que haja um obscurantismo dentro do conhecimento ou um obscurantismo do conhecimento.  A rejeição da verdade e de seus frutos e a adoção da mentira com suas ervas daninhas é a resposta mais completa que me vem a princípio.
            Então – deixemos de filosofar – aos cinqüenta chegamos da forma mais amena que se possa imaginar. Os companheiros de jornada – não usemos a palavra “companheiro” que ela carrega uma péssima reputação – os amigos de jornada seguiram seus caminhos em suas vidas, mas nossas vidas estavam sempre a se bater, a se cruzar, a se misturar, quando não por acaso, muitas vezes por obra de nossa vontade. E quantas e quantas vezes a vontade nos incitou à busca da companhia dos amigos! Hoje, mais ainda que antes, essa vontade se acentua, se enovela e avoluma, de sorte que ainda mais juntos ficamos. Fizemo-nos até parentes a fim de ratificar e referendar a irmandade. Apadrinhamos os filhos uns dos outros para garantir o sustento de quem necessitar.
            Por tudo isso – a data marcante e a longa amizade e cumplicidade – é que será o ano para comemorar e celebrar. A festa vai ser de arromba. É só aguardar.

Fernando Cavalcanti, 03.01.2011

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