terça-feira, 25 de junho de 2019

REPENSAR: UMA SUGESTÃO PARA O ANO

 Médico e paciente são uma unidade indissociável. A razão do médico é o paciente. Sem paciente não há médico. Se não houvesse doença a afligir o ser humano não haveria médico. Assim, os médicos são seres humanos que aprendem sobre doenças e seus tratamentos para beneficiar seres humanos vítimas delas. Então, temos seres humanos tratando e seres humanos tratados.
            Aprendemos cedo. A entrevista com o paciente ao momento do primeiro encontro serve a dois propósitos, ambos de importância vital para o paciente: elaborar um raciocínio diagnóstico e estabelecer uma relação entre ambos. A consulta não é de interesse do médico – é de total interesse do paciente. É ele quem está doente; é ele quem está temeroso de um tratamento doloroso e às vezes indignante; é ele quem está apreensivo sobre o prognóstico de sua doença; é ele quem sofre ante as incertezas que se lhe apresentam; é ele quem teme a mutilação, a dor, a morte; é ele quem se preocupa sobre o futuro de sua família no caso de sua falta.
Se o paciente, e somente ele, sofre com tudo isso, que interesse vital sobra ao médico durante essa consulta ou entrevista? Nenhum no que tange a ele próprio; sua preocupação é, toda ela, voltada a todos os interesses do paciente. Se assim for, e o paciente assim perceber, estará em vigor uma forte relação de confiança.
Nada mudou em relação às doenças. Em tese elas continuam existindo e afligindo os seres humanos. Mudaram os médicos? Não sei. Não vivi ao tempo dos médicos de família. Dizem que eram tempos de bons médicos. Eram tempos em que os médicos conheciam a família e seus problemas diversos mais até que o padre. Os médicos eram psicólogos e outras coisas mais. Eram confidentes. Eram ouvintes. A entrevista era demorada, o exame físico detalhado, meticuloso e cuidadoso. O médico ficava hora e meia duas horas com seu paciente ao primeiro encontro. E por que ficavam tanto tempo? A entrevista com o exame físico é, de fato, uma ampla coleta de informações para a construção do diagnóstico. E mais: é o momento de o paciente sentir que o médico está transmitindo a mensagem “estou aqui com você e, aconteça o que acontecer, ainda aqui estarei e não te abandonarei, e tudo farei para aliviar teu sofrimento”. O médico não sabe tudo, nunca saberá; mas estar com o paciente neste momento difícil é parte do alívio de que ele necessita. O médico não existe para curar, mas para aliviar  – “curar, às vezes; confortar, sempre”.
Mudaram os médicos? Se foi assim em passado recente – o que são quarenta, cinqüenta anos? – mudaram muito, e para pior. Os recursos tecnológicos para diagnóstico cresceram assustadoramente; os recursos terapêuticos idem. Máquinas maravilhosas dão diagnósticos fantásticos. (Quanto mais fantástico um diagnóstico, pior para o paciente: é quase sempre uma doença “ruim”.) Drogas outrora inexistentes curam ou controlam doenças antigamente devastadoras. No tempo do médico de família só existiam alguns exames de sangue, exame de urina e radiografias. (Até hoje não sei como os médicos conseguiam ver alguma coisa nas abreugrafias, radiografias do tamanho do papel de enrolar bombom. Grassava a mortal tuberculose.) Tudo isso, as melhoras tecnológicas e farmacológicas, veio melhorar a sobrevida de muita gente. Em contrapartida, ficou o vazio da má qualidade de vida. Uma consulta médica de hoje entrou para o rol daquelas coisas que compõe um todo que se chama “má qualidade de vida”. A morte, antes natural e parte da vida, tornou-se algo abominável e até fonte de preconceito. Veio com isto a obstinação terapêutica e a distanásia. (Conhecem o vice José Alencar?) Em suma, hoje os pacientes são extremadamente carentes de seus médicos. Dispõem de excelentes operadores, por exemplo, verdadeiros artífices do bisturi, mas que são um poço de insensibilidade, desumanidade, frieza e avareza. Apareceram os mega-congressos médicos, verdadeiros mega-shows de estrelismo de supostas sumidades imbatíveis. (A Madonna morreria de inveja.) Desapareceram a humildade e o senso do limite nos corações de muitos desses respeitáveis senhores engravatados. Nos congressos discutem o que hoje está nos livros e na rede mundial de computadores. Ainda que a informação seja facilmente acessível, barata e fácil, os médicos se reúnem nesses colóquios intermináveis e na volta ainda têm seus nomes alardeados em colunas de jornal de nosso míope e superficial high society.  
Mas, o pior reside no ferir da mais elementar lição dada na faculdade de medicina: a clínica não mais é soberana. De fato, e para falar a verdade, há até, entre os médicos, quem faça troça do velho adágio e quero presumir que haja acadêmicos que se espantem ante o contraste do que dizem os livros e o que se faz na prática. Isso seria o pior do que se faz – ou melhor, do que se não faz – na prática. Há ainda o pior por parte de quem deveria fiscalizar a prática – a omissão dos conselhos regionais. Pretendem fiscalizar e promover a boa prática, mas na verdade são omissos.
Tomemos como exemplo o famigerado Instituto Doutor José Frota para provar o que digo. Como explicar e justificar os disparates que repetidamente ali ocorrem? Óbvio é que hospital cuja demanda ultrapassa os limites de si mesmo penalizará seus doentes com a má prática. E, se há má prática, onde está o conselho? O aumento da demanda para atendimento põe em risco a boa prática. Doentes, ainda que sejam vítimas de lesões e ferimentos graves, necessitam, em algum momento, de uma boa consulta/entrevista médica. Pois lhes digo: isso quase não existe no Instituto Doutor José Frota. Erram os médicos quando são passivos diante desse estado de coisas. Erra o conselho ao se omitir fragorosamente. O conselho tem o dever de confrontar os gestores públicos e, com sua autoridade, exigir deles que façam o que têm se omitido de fazer. Não será um favor que se estará a pedir – será a cobrança legítima de uma obrigação não cumprida. Os médicos, ao invés de criar organizações para defender seus interesses salariais, deveriam primeiramente criar organizações para defender os interesses dos doentes. Deveriam criar e difundir numa base contínua, diante da demanda de guerra que não cessa, algoritmos para uma consulta minimamente informativa e que ajude a estabelecer o elo da boa relação entre todos os médicos que entram em contato com determinado paciente e este mesmo paciente e seus familiares. Salários melhores não vão resolver, como não têm resolvido, a angústia contínua que assola o corpo clínico daquele hospital. Criatividade e humildade para se reconhecer incapazes de resolver sozinhos o que lá acontece seriam um excelente começo. Espírito de corpo que una o médico do plantão ao que está na enfermaria viria selar a união necessária.  Egos feridos e ultrajados de nada servem. Humildade diante do ultraje é a receita para a grandeza que falta. Os médicos devem sair em defesa dos pacientes, e não de si mesmos. Vitimizar-se como classe não resolve. Esperar que a sociedade nos veja como pobres coitados e pobres vítimas dos maus gestores da saúde é um erro tão repetido quanto inútil. Urge repensar tudo. Urge buscar na sabedoria das lições deixadas ao largo e na ensinadora experiência do passado a orientação do caminho a seguir. Ninguém neste universo ou em qualquer outro ousaria se posicionar contra uma classe que defende a razão de sua existência. O mesmo vale para os que têm clínica privada. Seu caminho caminha em direção aos médicos do serviço público como duas paralelas a se encontrar no horizonte infinito. Por tudo isso, dever-se-ia estabelecer um seminário contínuo envolvendo todos os funcionários do hospital a fim de envolver a todos num mutirão em favor da boa prática e da excelência da gestão. Cobrar o que é legítimo foge ao lugar comum das greves e movimentos por salários.    
Caso contrário, é melhor sair, negociar as dívidas, chamar a família e dizer que já não é mais possível continuar. Uma bodega na esquina dá melhor sustento. Os médicos de fato não deveriam tirar seu sustento do que fazem. Médicos tratam doentes. Doentes são em sua maioria pobres. Pobres não têm dinheiro. Médicos não deveriam ter dinheiro nem posição social. Esse é o maior equívoco a se dirimir.

Fernando Cavalcanti, 27.12.2010  

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