segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A INEXISTENTE ALEGRE E LINDA MÚSICA

  • O amigo é aquele que diz na cara aquilo que o inimigo também o diria. Eis aí a dificuldade de se distinguir quem é quem. Desde que seja a verdade, que venha de lá o que lhes pareça ser a verdade. A verdade é, ao que parece, uma variável, um xis; não é, de modo algum, aquela coisa absoluta, existente por si mesma. Pois que cada um diga o que bem lhes parecer, desde que sejam francos.
                O amigo fuzilou: -“Minha filha ficaria triste ao ler teus textos.” Perguntei: -“E por quê?” Respondeu: -“Muitas críticas e muita coisa ruim!” Quis dizer ruim o assunto que com freqüência abordo como decepções, tristezas, chifres, a politicalha, a ladroagem vicejante, etc. etc. etc. Sem mais perguntas, o assunto morreu. Passou a falar de um desafeto. Falar de desafeto não é lá uma coisa muito boa. Fazer o quê! Ele podia falar de seu desafeto e eu, que ao vivo sou pior do que on line, tinha de ouvir. Paciência.
                Por isso resolvi: - não falo mais de desafetos, ou melhor, de coisa ruim. Esqueçam o questionador que fui um dia. E, para ser sincero, deve ser mesmo um pé no saco ler sempre uma temática recidivante. Fim. Parei. Enchi. Eu mesmo admito.
                Levantei-me e fui ao toillete. De frente pro espelho, exclamei em silêncio: -“Você é mesmo uma besta! Vá encher o cão com reza!” E fiz força pro xixi sair rápido, respingando em tudo. Toda violência requer um certo comedimento. Afinal, meu objeto de ira era eu mesmo. Saí de lá respingado de xixi. Não sei se alguém me percebeu o perfume a ser vencido por outro olor. “Vá encher o cão com reza”, teria dito a quem me acusasse do perfume derrotado.
                O amigo ainda falava do desafeto. Não comigo, com outra pessoa. Eu merecia mesmo era que ele me puxasse ao canto e me infernizasse, como o fiz a ele com meus textos. Que falasse do desafeto, da escravidão do trabalho, da ex-mulher implacável, e de tudo o que se conversa de ruim quando se quer azucrinar o juízo de um cristão.
                Não foi também à toa que ouvi de uma amiga a confissão de seu temor: - que eu escrevesse qualquer dia sobre ela. Ou que eu pudesse lhe fazer uma crítica num texto “coisa ruim”. Concluí, ao ouvir do fantasma que a assombra, que também sou objeto do medo de algumas pessoas.
                Após um breve lapso – dessa vez não fui ao toillete – concluí também que, ora essa, paro já, já de escrever. Sim, porque tudo o que se escreve, e mesmo a poesia, envolve a vida, as pessoas, as angústias, as tristezas, enfim, uma “coisa ruim”. Daqui a pouco vou ser obrigado a dizer que toda forma de arte é uma purgação e uma terapia. Só se purifica e se trata alguma “coisa ruim”. A música que chora o amor perdido é mais bonita que a do não-amor, ou a da ausência de amor, e mesmo a que declama do amor que deu certo. Estou agora mesmo, neste exato instante, a procurar em meus arquivos uma música bonita que fale de alegria.
                Música alegre não é arte. Vejam, por exemplo, esse forró que não é forró que invadiu o nordeste brasiliano. Ainda que alguns falem de “coisas ruins”, seu ritmo lembra o sujeito que, doido varrido por um amor frustrado, sorrindo sai a destruir tudo numa sanha incontrolável. Não combina com o que disse o Nelson Rodrigues quando perguntava: por que toda grande dor tem de ser sempre ridícula? Donde concluímos que a dor ridícula é a de sofrer chorando na mansidão. Quando o sujeito sofre com estardalhaço e freneticamente lhe damos outro nome à dor – será uma neurose histérica. Eis o que traduz esse “forró” que não é forró: - uma cultura social de neurose histérica. Não há aqui arte. Não há aqui o ridículo e a beleza da grande e sofrida dor.
                Fui pegar uma cerveja. Voltei à amiga sorrindo e aliviado. E já sabia: com essa alegria toda não me sairia nada de bom para escrever. Espero languidamente alguma “coisa ruim” que me venha inspirar com a dor rodriguiana, a doer como a adaga cravada ao peito até que me abrace a morte em seu suave e sem onirismo sono.
                Ainda agora não achei em meus arquivos a alegre e linda música. Ela simplesmente não existe.

    Fernando Cavalcanti, 07.08.2010

     

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