terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

DEVANEIO CARIOCA

Casoba, sabes muito bem que o Rio é uma ilusão. Sim, é uma dessas visões que não temos nem em sonhos. E, cá entre nós, sonho muito pouco e, ainda por cima, em preto e branco. Não me lembro de já ter sonhado a cores. Jamais sonhei colorido. Conclusão: sonho como um cachorro, sim, um cão vadio.
            O fato indiscutível é que o Rio é uma visão fantástica, onírica. Até a feiúra dos morros repletos de casebres e miséria se encaixa perfeitamente na paisagem. Creio até que sem eles a beleza seria menor, ou mais acanhada, ou mais discreta. Sem os morros e sua pobreza o Rio seria só cinqüenta por cento, eis o que queria dizer. Por isso, detesto quando vem um desses políticos safados e anuncia aos quatro ventos: -“Vou acabar com a pobreza no morro!” Jamais votaria num deles. Aliás, ao dizer tal asneira em campanha tal político sela o seu destino: vai para o ostracismo. E ninguém teria dó de ele ter sido mal interpretado. É uma daquelas coisas que se briga com unhas e dentes para fazer acontecer pensando-se que é o que todos querem, mas que na verdade ninguém tem a menor intenção de mudar. Nem mesmo e principalmente o favelado do morro. Que seria dele sem a favela? Nada, eis a verdade. Seria apenas mais um burguês metido a besta.
            Essa beleza fantástica cria o mito da quimera carioca. Ele é tão forte que o sujeito nasce aqui em Itaperuna e, mesmo que no outro dia vá morar no Ceará, dirá a todos os seus coleguinhas do jardim de infância, cheio de ginga: -“Sou carioca!” E quando se tornar adolescente será a atração do shopping entre as cearenses. Dirão, olhando para ele com aquele ar esfomeado: -“Ele é carioca!” E nem preciso dizer que a essas alturas já terá o sotaque característico. Chiará mais que cobra cascavel quando lambe a própria e asquerosa língua bífida. Dirá “trêsh” ao invés de três, “eshquerda” ao invés de esquerda, e “moshca” ao invés de mosca. E foda-se quem acusá-lo de boçal! E já nem falo do fato de, no fundo, não ser carioca. Na verdade ele é fluminense e itaperunense porque carioca é quem nasce na cidade do Rio de Janeiro e não em Itaperuna, ou em Campos, ou em Macaé. O problema é que ele jamais aceitará o fato de que todo carioca é também fluminense, mas nem todo fluminense é carioca. Falta-lhe o mínimo de conhecimento da teoria dos conjuntos.
            Ora, ser carioca é o passaporte para os varões vigorosos que saem desta terra em busca de aventuras alhures. Sim, porque não somente as cearenses mas também as potiguares, as pernambucanas, as piauienses, as paraibanas e até as mineiras se engraçam desse mito.
            O caso é que, mais que ninguém, o próprio carioca está entediado de ser carioca. Já não mais suporta ver o Corcovado e o Pão de Açúcar, e a travessia da ponte tornou-se um pé no saco. A chuva carioca perdeu o seu encanto e na verdade tornou-se um pesadelo; a mulher carioca já não mais suporta se olhar ao espelho e está farta de sua própria e exuberante beleza; e até os artistas tipicamente cariocas já se foram. Em suma: todos querem ser cariocas menos os cariocas. É uma grande dor de cabeça ser carioca, Casoba.
            Vemo-nos em breve.

Fernando Cavalcanti, Rio, 21.10.1998

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