segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

LEMBRANÇAS E DESEJO

O passado é uma faca de dois gumes. Quando delicioso nos corta com a saudade imorredoura; quando ácido nos atormenta com seus fantasmas hediondos. Feliz sou eu, em quem a saudade há de permanecer enquanto viver, a me acariciar no presente com suas imagens, vozes, cheiros e lembranças enternecedoras. Onde mais pôr tanta gente amada? Onde mais ver suas faces sorridentes e felizes nos muitos instantes que se eternizaram na memória? Como não ouvir as suas vozes atravessando os longínquos anos a me chamar o nome numa reprimenda, numa brincadeira? Cruel é a vida que de nós tudo leva, deixando somente o sabor adocicado dessas deliciosas ilusões... Como é suave o gosto do sofrer pela porta que se abre ao passado que foi só amor e bem querer!
            Subitamente vem o aperto que sufoca o peito, a lembrar que o presente, ainda que desejável, não se iguala ao que se perdeu na estrada da vida. Não se vai o amor essencial. Para sempre nos acompanhará. Fica, contudo, a saudade cortante do objeto desse amor. E quando são muitos, nossa...! Quanto faz falta a casa repleta daquela gente falante, daquela gente sadia, cujas vidas eram plenas em suas dificuldades e imperfeições! Sente-se o gume afiado do amor que permanece sem a possibilidade de um beijo... É imperioso ser feliz nesse vácuo que a vida impõe, mesmo que as lágrimas nos molhem os olhos que ainda vêem o que não mais existe.
As casas, os móveis, a suspensão dos objetos inanimados ganham uma animação insuspeita porque permanecem ali parados, extáticos, como sobreviventes partes dos que partiram, a lembrar seu zelo e seu gosto por isso ou aquilo. São como testemunhos de suas existências, de suas passagens por este mundo, como se tivessem ficado para trás esquecidos pelos que rapidamente se foram, sem tempo de lhes levar. E, de fato, deixaram tudo... nada levaram. Objetos que machucam por sua posição escolhida, ali postos ao gosto do que partiu, janelas de sua alma, expressão de sua vontade, seu desejo de beleza e harmonia; janelas sobre as quais nos debruçamos a ver o passado onde estão os amados. E se há uma fotografia... por ela penetramos, uma porta no espaço-tempo para essa tão desejada viagem de volta, sôfregos por um gole na realidade da existência do ser amado. Ainda que a fotografia nos mostre uma rua, com um lar e uma árvore defronte acariciada por ventos que dobram sua copa, por aí mergulharíamos a experimentar a brisa que por ali passou faz tantos anos...!  
Quase nunca se sai da vida com as devidas despedidas e considerações. Há sempre uma palavra não dita, um gesto contido, um olhar desviado... Outras vezes estamos longe, a viajar, ou a subiteza da partida impele ao além rapidamente o que se vai, deixando-nos ainda mais perplexos. Oxalá tivesse a socrática sorte de estar entre os amigos e asseclas à hora do final, e cheio da tranqüilidade daquele que adquiriu sabedoria.      
Os amigos do passado, cuja convivência a vida nos subtrai, também partem para sempre, se assim permitirmos. Teimar, dizer não às forças centrífugas da vida é a única forma de perpetuar a convivência no presente. Dizia o poeta que morrer é apenas não ser visto. Vejamo-nos cada vez mais porque a vida só tem verdadeira riqueza quando a lastreamos com os relacionamentos, os bons relacionamentos. Ainda não morramos um para o outro. É a saudade dos amados que partiram que me impele à exortação de tua constante presença. Fica, pois. Não te afastes de mim.

Fernando Cavalcanti, 02.06.2010  

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