segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

A VIDA EM SALA DE AULA

Amorim fez cursos e cursos, terapias e terapias, retiros e retiros. Os cursos, as terapias e os retiros pretendiam ensinar qualquer coisa, alguma coisa. Iam ele e a mulher. Não sei por que diachos se metiam ele e ela, fim de semana inteiro, nestas buscas por não sei quê. Mas iam. Completavam tudinho. Não faltavam. Eram assíduos. Assumiam o compromisso e iam.
            Tudo na teoria, aprendiam como reagir, como sentir, como amar, como sofrer, como rezar, tudo. Eu, um jurássico troglodita, olhava sarcástico aquela estória toda. Ele entendia que se aprendia a viver em laboratório. Eu jurava que se aprendia a viver vivendo.
            Foi só casar – pela segunda vez, se bem me lembro – e meteram-se numa terapia de casal. Eu me perguntava: -“Pra que diabos serve terapia de casal?”, e ele respondia que era para aprender a ser casado. Então concluí, para meu desespero, já que estava também casado, que o casamento havia de ser uma doença. Sim, terapias são feitas para doenças, salvo equívoco. Resolvemos experimentar, a ex-minha mulher e eu. Aqui uma ressalva.
As pessoas não entendiam por que me refiro à ex-mulher como ‘ex-minha’. Ora, se relerem o que escrevi na frase anterior, perceberão que ex-mulher é a que deixou de ser mulher, ao passo que ex-minha refere-se àquilo que já não me diz respeito. Portanto, o ex-cônjuge é ex-cônjuge, não é ex-gênero. A expressão “minha ex-mulher” supõe a manutenção de uma relação de posse que não traduz a realidade, ao passo que “ex-minha mulher” idealiza uma situação definitiva.
            Voltemos ao Amorim. Ou melhor, voltemos à experiência. Fomos, minha mulher e eu, à terapia de casal. Resultado: apartamos o mais rápido possível. Algum tempo depois retomamos o casamento. Resultado: apartamos definitivamente. Vejam bem: - não digo que a terapia foi a responsável por êxito tão funesto. Pelo contrário – a terapia curou a doença, o casamento. Devo dizer que jamais vira, até então, nada tão eficaz em matéria de remédio.
            O diabo é que Amorim e a mulher resolveram permanecer em terapia desde então - e ainda estão casados. Para meu conforto e alívio, li há tempos uma matéria dando conta de estudos sérios que concluíram que, em mais de oitenta por cento dos casos, a terapia de casal ajuda a fazer uma boa separação, um bom divórcio. Concluí, então, que das duas uma: - ou eles estão nos vinte por cento, ou são o casal mais cínico que conheço. Como sou íntimo de meu amigo, posso afirmar sem medo: são uns cínicos de carteirinha.
Pensando melhor, faz sentido. O risco é se dar a terapia por encerrada. Uma vez acabado o remédio, acaba-se a doença – o casamento. Então, percebi tudo. Amorim e a mulher não suspendem a terapia porque sabem, têm certeza, que o fazendo selam seu destino. Dito de outra forma, seu casamento é uma doença tão grave que é necessária mais e mais terapia para lhe dar cabo. Em resumo: - estão condenados a fazer terapia de casal até o fim de suas vidas, se quiserem que sobreviva o enlace. O cinismo nunca havia tido tamanha propaganda, tamanha apologia. Definitivamente, uma coisa para além do absurdo.
            E os cursos, os retiros? Ora, os cursos e retiros ensinavam o autoconhecimento, o autocontrole, a convivência em sentido mais amplo. E, de fato, percebia dia após dia um Amorim mais equilibrado, mais centrado, mais manso. Parecia que todos os seus fantasmas e cicatrizes haviam sumido, seus conflitos da alma nunca existido. Eis, então, que com ele vou, certo dia, a uma partida de futebol. E o que vi e ouvi me assombrou: - Amorim berrava e gesticulava que nem um louco. Minto. Não berrava: - vociferava. E babava uma baba bovina e elástica, de olho rútilo e lábio trêmulo, como diria Nelson Rodrigues. Um simples lance na partida lhe estremeceu como um terremoto da personalidade e do caráter. A princípio julguei estar diante de uma farra, e na verdade estava diante de uma fera. Concluí que em seu interior lutava para manter sob o chicote o monstro que agora rosnava. Dir-se-ia existir nele a dualidade de Robert Louis Stevenson, doutor Jekill e mister Hyde.
            Assim, acabei por entender o porquê de tantos cursos, retiros e terapias do Amorim. Justiça se faça: - ele se conhece a si mesmo.

Fernando Cavalcanti, 05.03.2010

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