segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

CARNAVAL E LATRINAS

Ouvi, durante muito tempo, desde a mais tenra idade até a adolescência, que eu era um tolo, um besta, um bobão. E sabem por quê? Porque não delirava com o carnaval. Se a regra era - e ainda é – delirar com o carnaval, era um imbecil quem a ela fugia. Era, e ainda é, assim. A diferença é que hoje não sou adolescente. Acolhe-se com naturalidade a frieza e compostura do homem maduro.
            Nos tempos da verdura dos anos, vigia o que dizia o samba sobre o samba: “quem não gosta de samba, bom sujeito não é...” Dir-se-ia haver um certo exagero em querer que os mais novos, todos os mais novos sem exceção, fossem vítimas do vaticínio do Caymmi. Eu estava incluído. Não gostava de samba. Paciência. Nas artérias e veias deveria correr o sangue africano. Se não, morte ao homem branco!
            Não é qualquer um que ouve essa cantilena desde muito cedo e sai mentalmente ileso. Contudo, sobrevivi. E sem seqüelas, o mais importante. Quiseram até me subtrair a nacionalidade. Diziam que brasileiro que é brasileiro gosta de samba e de carnaval. Tinham-se sérias dúvidas sobre minha nacionalidade. Se não fosse brasileiro, seria o quê? Saí voando a ver se a Casa de Saúde César Cals ainda repousava em solo nacional. Para minha tranqüilidade ela ainda estava ali, próxima à Praça da Lagoinha, na Avenida do Imperador.
            Entretanto, é bom aproveitar para desfazer essa confusão. De fato gosto de carnaval, das marchinhas, do bom e pacífico carnaval tradicional. Já estou aqui aguardando o Carnaval da Saudade do Clube Náutico com as marchinhas clássicas que nos levam a viajar no tempo; e detesto o “novo” carnaval, com aquele negócio de axé, pagode e outras invenções sem pé nem cabeça. Carnaval e samba são coisas distintas. Aí se deu a confusão que ora se desfaz.
            Para provar o que digo, fui ao Paracuru logo após a adolescência. Era um carnaval de rua, desses em que nos lambuzamos de tudo. A convite de um amigo, fui. Alugaram a casa de um pescador e lá fomos nós. Depois, mais tarde, descobri que a casa abrigava mais de quarenta pessoas quando ali não caberia dez. Cheguei pela manhã e fomos à praia. A cidade fervilhava e a canícula era insuportável. Começamos a bebericar e em pouco tempo eu estava bêbado. Saímos dali direto para a praça principal onde acontecia o famoso mela-mela.
            À meia-noite voltamos para a casa. Todos estavam num pileque de dar dó. Eu era uma mistura de cachaça, suor, maizena, areia e xixi. Não dormi – desmaiei numa das várias e incontáveis redes que estenderam na casa, entre os quartos e as varandas. Não se via muito, seja devido a embriaguez, seja devido a escuridão.
            Acordei por volta das três da manhã com uma sede de maratonista. Estava imundo e desejava desesperadamente tomar um banho. A cachaça era boa e não sentia dor de cabeça. Dali a pouco veio uma vontade enorme de “ir ao banheiro”. Levantei-me da rede e saí em busca da geladeira, pisando em gente que dormia ao chão. Na geladeira a decepção e o infortúnio – estava vazia. Nada para comer ou beber. Avancei na torneira do banheiro em busca de beber e me molhar. O exaspero tomou conta de mim – nenhuma gota d’água. A sede era descomunal e minha saliva era espessa e rala. Os lábios secos rachavam. A vontade de “ir ao banheiro” era quase incontrolável e levantei a tampa do reservado.  
            O reservado estava cheio até a tampa de... deixemos assim mesmo. Não poderia ser diferente. Uma legião de bêbados sem água não pode gerar uma privada que não aquela.
            Desde tal estripulia brinquei muitos e muitos carnavais, e hoje o faço com uma única e importante ressalva: além de um confortável lugar para dormir, um bom banheiro e água em abundância, exijo um quarto confortável e escuro com condicionador de ar para uma boa noite de sono. Sem tudo isso me é impossível permanecer no recinto. Faço como fiz no Paracuru – dou o fora.

Fernando Cavalcanti, 24.01.2011

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