quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

O "SANTO SUDÁRIO"

Sua pele exalava um odor muito agradável; sua boca e toda sua pele cheiravam tão bem que mesmo as suas roupas de baixo ficavam impregnadas:...” (Plutarco, Vidas Paralelas – Alexandre e César - IV,4)

Falar da intimidade alheia não é coisa que se tenha em boa conta. Por isso, evitemos.
            Entretanto, há algum mal em falar dos hábitos dos outros? É bem possível que sim, já que quase sempre os hábitos mais inconfessáveis estão justamente no ambiente da alcova. Dizia o Nelson Rodrigues que, se soubéssemos de nossa recíproca intimidade, não trocaríamos um bom dia. Não falemos, então. Todos temos hábitos indizíveis.
            O diabo é que há pessoas cujos hábitos, de tão escancarados e hilários, merecem ainda mais ser difundidos e propagados por toda parte. Por exemplo, o Motta. Não sei se o conhecem, mas o Motta teria sido inventado se não tivesse nascido. O homem é bonitão. Cultiva até hoje suíças bem cuidadas, que vieram substituir um denso e proeminente bigode que fizera um sucesso tremendo entre as pequenas em tempos imemoriais. Todo o seu conjunto lembra o que costumo classificar como um “galã de filme de quinta”. É dado a viagens internacionais desde o tempo em que essas viagens eram um luxo reservado a pouquíssimos mortais.
            Numa de suas mais remotas idas ao primeiro mundo comprou um calção verde claro de bordos brancos. Era, ao início, uma peça reluzente, de um tecido bem nascido e ofuscante. Tinha, em um de seus lados, uma logomarca, coisa de se admirar. Se não nos avisa de sua compra internacional, daria para pensar que o adquirira bem ali na 25 de março, dentre os importados. Lá também se acham coisas de qualidade. De fato, ninguém jamais inquiriu do Motta sobre a origem de seu calção. Foi ele mesmo quem cuidou de informar. Aliás, nunca seria demais salientar que o Motta sempre adorou contar os seus feitos e aventuras pelos quatro cantos do mundo. A plebe o ouvia, boquiaberta, e seus causos ganhavam uma dimensão quase heróica. Comprar um calção na América seria algo realizável somente em pequeníssimo círculo, como já disse. Sua cidade preferida: Nova York. Contava seus passeios e andanças na Big Apple como se conhecesse cada palmo da metrópole. “Daí entrei na avenida tal, e saí na praça tal, e emendei ao Central Park e tal, e tal, e tal...” No início eu perguntava: -“Não deste um abraço no Frank Sinatra?” Ou: - “Viste o Woody Allen ou a Sharon Stone?”O homem, ao que parece, nunca via ninguém. Certa vez lhe pedi para dar um abraço no John Candy, mas aí lembrei que havia morrido meses antes. E ninguém falasse em Europa. Estivera lá, sim, certa vez, mas sua preferência era a América. Era como se o amigo reverberasse a famosa frase de James Monroe: “A América para os americanos.” Era exatamente isso: o homem já nem se via brasileiro – era estadunidense de cartão verde e tudo.     
            Mas voltemos ao seu calção. O calção do Motta era uma dessas peças de roupa que se usam em ocasiões diversas. Dir-se-ia uma peça versátil. Com ela jogaria uma partida de futebol, ou iria à praia – funcionava como uma sunga -, ou a um churrasco no verão nordestino. Um luau também lhe seria conveniente. Em seu corpo atlético, num festival de braços roliços e pernas exuberantes o Motta não faria feio, inda mais vestido em seu típico traje que já se lhe tornava uma marca registrada. Em seus tempos áureos o calção seria bem-vindo em qualquer ocasião, com exceção talvez dos eventos noturnos. A bendita peça de roupa não sabia, mas não poderia ter encontrado melhor destino que o Ceará. E acontecia justamente o seguinte – Motta passou a usar seu calção em tempo integral. Não o tirava nem para tomar banho. Com efeito, aproveitava seu banho para lavar o tal calção.
            Os amigos, com quem convivia com freqüência maior do que normalmente fazem os amigos, viam na obstinada vestimenta do Motta uma manifestação de seu caráter aglutinador e conservador, mas também um sinal da síndrome de Peter Pan. Só os de espírito jovem e rebelde se prestam a esses rompantes de vontade eterna. Já ia lá aos seus quarenta e poucos. Para completar e enfatizar ainda mais a instalação da síndrome perceberam que o Motta abolira as cuecas. Não cuidava, desde que passara a usar a peça, de usar cuecas. Como se diz aqui no Ceará, o homem só andava “no osso”. E – pior! – não era somente quando estava de calção; nas raras vezes em que era obrigado a usar roupas formais também suprimia as cuecas. Não faltemos com a verdade: durante o dia, na semana de trabalho, o Motta se vestia impecavelmente em ternos belíssimos. Até hoje estou sem saber se esse costume se estendia ao uso dos ternos. Quero crer que não, que só o punha em prática ao traje formal da noite. Seu hábito tornou-se amplamente conhecido e ele fazia questão que fosse assim mesmo. O safado dizia que namorar sem cuecas era outra coisa. Daí a moda de andar “no osso” à noite e ao usar o calção.
            Ocorre que, de tanto usar o tal calção desguarnecido das devidas roupas íntimas, a parte interna da peça passou a ficar “tatuada” com a anatomia íntima de meu amigo. Todos sabemos que o corpo exala, exsuda e transuda o que produzem suas glândulas. E que, de tanto expelir essas secreções que se misturam às impurezas do ar que nos rodeia, suja-se o corpo de forma mais contínua, de modo que certas partes devem ser cuidadas com tal e qual zelo, se se quiser uma permanente e eficaz limpeza.
            Pois, certa vez, surpreendeu-se, numa das raríssimas ocasiões em que o Motta removera o calção molhado para tirar uma soneca, as marcas e desenhos da íntima anatomia de meu amigo no avesso da vestimenta. Eram tão claros e bem definidos os detalhes que a peça de roupa bem poderia, se aberta exibindo sua parte interna, ser exposta em galeria de arte. Passaram a chamá-lo, então, de “santo sudário”. Há de ter sido o primeiro caso de uma peça de roupa a ganhar apelido. Era como se o amigo fosse outra pessoa se não o usasse. Não conseguíamos vê-lo de outra forma. Sem o “santo sudário” não existia um Motta. Não sei se me entendem.
            Com o tempo a parte exterior do vistoso calção perdeu seu viço e a cor verde brilhante o seu matiz, de modo que Motta abandonou permanentemente seu uso. Outro dia confessou-me, quando lhe perguntei do destino do famoso calção: -“Ainda o guardo em casa!” Foi durante tanto tempo o “santo sudário” do Motta presente em nossos encontros e viagens que há várias e várias fotos do homem nele vestido ou quase nu.
O que o homem não abandonou mesmo foi o péssimo hábito de andar “no osso”. Um espírito selvagem é quase sempre indomável.

Fernando Cavalcanti, 17.01.2011        

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