segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

"MULHER É PRA GENTE COMER MESMO!"

O sobreaviso daquele fim de semana era de sua responsabilidade.  Sobreaviso é um plantão em que o médico não está presente, mas implica na mesma atenção e compromisso. Má sorte, já que a festa na casa do chefe prometia.
Entretanto, o próprio chefe deu-lhe o aval para comparecer, desde que fossem cumpridas todas as obrigações de praxe. Por outro lado, todos os doentes internados estavam bem, com exceção de um que estava morre-não-morre. E não havia mais o que fazer. Se morresse ele teria que vir de lá prescrever-lhe o atestado de óbito. Era parte da rotina. Defunto dali não saía sem atestado. Fosse de dia ou de noite, feriado ou dia útil, o defunto saía com o enterro desembargado.
               Passou, então, bem cedo na enfermaria e visitou todos os doentes. E ainda pôde contar com a ajuda de Dr. João Florêncio, decano do Serviço, rico em anos de vida de médico, mas jovial e sedento da companhia dos residentes da casa. O Parkinson já não mais lhe permitia o ato cirúrgico, mas seguia firme na clínica, nas sessões, juntas e visitas, emprestando sua magnífica experiência e elegante saber médico. Terminado o serviço lá pelas onze, seguiram de carro, ele e Dr. João, para a casa do chefe, para o churrasco.
                                                                                  ***   
           Demorou um tempo até sentir-se à vontade. Foi o chefe quem lhe deu a senha, servindo-lhe uma cerveja. E haja picanha. O mesmo chefe às vezes o servia dizendo:
                -“Essa é pra diretoria!” - e sacava do enorme espeto um naco da carne suculenta e gordurosa no prato à sua frente. Sendo assim, já se sentia em casa. Ou melhor, era membro da “diretoria”. Recusou a falsa modéstia dos boçais que não se agradam e já tirava uns dedos de prosa com um ou outro desconhecido. E dentro em pouco se sentava ao lado de Dr. João Florêncio que, apesar da idade e do tremor das mãos, esbanjava-se na cerveja.
Não sabia de onde saíra e repentinamente se viu com um violão ao colo, e a seu lado, o oposto de onde sentava Dr. João, uma bela loira olhos cor de esmeralda. Sussurrava-lhe ao ouvido, quase lhe mordendo a orelha:
                -“You are a very handsome man!”
 Percebeu, então, que a loira estava cuidando para que nada lhe faltasse. Da cerveja à mais exuberante picanha a loira lhe provia. Sem falar nos olhares fulminantes e nos sussurros libidinosos, entre uma e outra música. Quando voltava do toalete ela o abordou de frente e pulou-lhe ao pescoço num beijo quente e molhado. Ele cedeu, mas não se sentiu à vontade. Afinal, estava na casa do chefe flertando ou se deixando flertar pela atirada amiga gringa de sua filha. E o pior: todos sabiam que era casado. Sabiam também que seu casamento não era lá esses balaios todos, mas... E daí? Era casado e estava na casa do chefe com a língua metida na boca da amiga da filha, que diabos! Poria a culpa na cerveja. Os outros haviam de estar de tanque cheio também. “Fodam-se”, pensou. E desceu com a loira para a rua onde estariam mais à vontade. Caía a noite.

                                                                              ***
             Acordou na madrugada em seu quarto no hospital – morava no hospital - com a loira ao lado nua em pelo. Novamente as carícias, novamente o amor. E despachou a mulher num táxi meia hora depois.
                Pela manhã, na enfermaria, a ressaca da estripulia. Ainda bem que era domingo e não teria que se envergonhar diante de ninguém. Teria mais um dia para pensar em algo, ou esperar que a memória alheia falhasse sob o efeito de suas libações. Entregar-se ao trabalho naquele momento era a única opção.
                Só não contava novamente com a ajuda de Dr. João Florêncio, como no dia anterior. Cumprimentou-o meio sem graça e procurou não dar espaço para conversas. O decano, experiente também da vida leiga, percebendo-o arredio, perguntou:
                -“Ó, Fulano, que se passa contigo que estás tão triste hoje?”
                Ele, sem outra saída  e preocupado com os dias por vir, achou melhor desabafar:
                -“Ah, Dr. João... tô muito desgostoso com o que fiz ontem em casa de Dr. Beltrano... Peguei a amiga da filha do homem na frente de todo o mundo! E o pior: trouxe-a para cá e... bem, o senhor sabe, né?”
                Dr. João com as mãos enfiadas nos bolsos e o olhar reprovador do sentimento de culpa alheio atirou sem piedade, quase gritando:
                -“Então é isso? Besteira, rapaz! Mulher é pra gente comer mesmo!”

Fernando Cavalcanti, Rio, 1998

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